Uma
situação no mínimo estranha mas como outras muito frequentes nesta guerra cheia
de contrastes, foi o facto de que tendo efectuado na metrópole a minha formação
e especialização em Reabastecimento de Material, treinado fogo real
apenas com duas ou três armas, fui na Guiné face às necessidades das funções de
mecânico de armamento, obrigado a fazer fogo com todo o tipo de armamento
existente na companhia, passando a ser para além do comandante o único militar
com autorização para executar fogo de experiência em qualquer situação.
Era
igualmente da minha competência, a manutenção dos frigoríficos e arcas
congeladoras existentes no quartel.
Estes equipamentos, funcionavam a petróleo e a
sua manutenção baseava-se em manter os níveis dos depósitos, substituir as
mechas e verificar o estado das tubagens dos aparelhos.
A
alimentação no quartel era habitualmente igual para todos os elementos
metropolitanos, mas a ementa dependia muito da situação vivida no momento ou do
facto das colunas de reabastecimento conseguirem chegar ou não ao destino a
tempo e horas.
De
qualquer forma, nunca era muito variada e em quase todas as refeições se
incluía a bianda (arroz, base da alimentação da população da época), que
os africanos acompanhavam com mafé (acompanhamento de bianda, conduto,
muitas vezes peixe seco). e que nós acompanhava-mos com peixe frito
ou carne guisada.
Também
se utilizava frequentemente, dobrada liofilizada com feijão branco, ou grão com
bacalhau igualmente proveniente do processo de liofilização (técnica natural
de secagem a baixa temperatura, onde a água é retirada do produto no
vácuo a 30º, que permite a conservação dos alimentos mantendo as suas
principais características).
Por
vezes ao domingo era motivo de festa quando tínhamos direito a ¼ de frango
assado acompanhado de batata frita e arroz e para variar o habitual consumo de
cerveja, esta refeição era acompanhada de uma garrafa de vinho verde Casal
Garcia.
Quando
as colunas de reabastecimento de géneros, com uma periodicidade mensal eram
atacadas em emboscadas e o seu conteúdo destruído, saqueado ou impedidas de
chegarem ao seu destino, a reposição dos géneros só voltava a ser possível
quando da próxima data de calendário referente ao mês seguinte, tornando-se
necessário encontrar soluções, tomando iniciativas, pondo a imaginação a
funcionar.
As
diversas alternativas que nos surgiam, passavam por uma deslocação até à margem
de um rio nas proximidades do Bachile, onde com o auxilio de granadas
defensivas lançadas à água, capturávamos alguns peixes que pelo impacto da
explosão, ficavam a boiar sendo depois de seleccionados, aproveitados na
maioria das vezes para fritar.
Outra
hipótese seria recorrer à caça mas, esta alternativa para nós tornava-se um
pouco mais complicada porque, assustado pelos rebentamentos provocados pelas
explosões os animais não andavam tão próximo do quartel quanto o desejávamos e
por isso era necessário avançar largos metros dentro da mata para encontrar
alguma peça de caça, o que naquela zona, também não era de todo recomendável.
Mesmo
assim, numa dessas arriscadas saídas para o exterior do arame farpado, nas
imediações do quartel na busca de algo, encontramos nesse dia um descontraído
casal de búfalos.
Na
falta de melhor e naquele momento servia perfeitamente para colmatar a falta de
alimento durante algum tempo, só que a surpresa maior estava para chegar,
porque ao dispararem sobre os animais, o primeiro a ser atingido foi o macho o
que provocou
uma reacção nada
simpática mas muito natural da fêmea, investindo ferozmente na nossa direcção,
sendo necessário igualmente abatê-la para que não nos viesse a causar problemas
de maior.
Só
mais tarde soubemos que os búfalos andam normalmente acompanhados do outro
elemento do casal e quando o macho é atingido a fêmea reage investindo, ao
contrário essa reacção não se verifica porque o macho não é tão solidário e
foge.
Perante a quantidade
inesperada de carne conseguida, foi necessário proceder ao seu transporte para
o quartel em duas viaturas Unimog 404 (Burrinho do mato) depois de
retirados os respectivos bancos.
Depois
de devidamente limpa e separada, foi guardada em várias arcas sendo consumida
até se esgotar o stock.
A
carne de búfalo tem um paladar muito semelhante ao da carne de vaca, embora de
aspecto um pouco mais escura e também por ser um animal selvagem é também um
pouco mais dura.
Durante
muitos dias e face à falta de outros géneros, a ementa não mudou e a maioria
das refeições basearam-se em carne de búfalo guisada ao almoço e ao jantar,
alternando apenas o acompanhamento de arroz ou batatas.
Na
estrada em locais bem mais distantes dos quartéis ou de zonas habitadas, a
presença de alguns animais selvagens, faz-se sentir por vezes quando menos se
espera, uma gazela que se atravessa na estrada, um macaco que salta das velhas
e opulentas árvores ou o rebanho que se afastou da povoação e teima em não se desviar,
são cenários observados com bastante regularidade.
As
hienas, (Lubus) eram as que mais se aproximavam do arame farpado, à
noite procuravam água junto das bananeiras, emitindo o seu característico grito
imitando o choro de um bebé.
Também
os sancu (Macaco cão em crioulo), invadiam com frequência o espaço junto
ao arame onde existiam plantações de mancarra e na luta pela sua posse
provocavam uma enorme confusão.
Igualmente
as cobras das mais variadas espécies e tamanhos representavam um perigo
permanente onde a cuspideira era conotada como das mais temidas e perigosas
porque laçavam fortes jactos de saliva, correndo o risco de cegar quem por elas
fosse atingido, surpreendendo-nos quando destapávamos as caixas de madeira onde
guardava-mos nos espaldões as granadas e outro tipo de munições.
Presenciei
vários tipos e tamanhos destes répteis, tinha sempre muita atenção onde pensava
poder encontrar alguma e reforçava os cuidados quando da altura da mudança da
pele em que se tornavam bastante mais agressivas.
Outros
répteis como os crocodilos que os africanos muito apreciavam e chamavam
lagartos, tinham o seu habitat próprio e quando capturados os de menor tamanho,
eram aproveitados para a sua alimentação.
Outro
animal muito popular na Guiné são os Djagudis (Abutre), ave protegida
pelas autoridades devido ao seu importante trabalho de limpeza, comendo tudo o
que é podre, prevenindo alguns focos infecciosos e a par desta operação de
limpeza os Djagudis estão ainda ligados a algumas práticas místicas segundo
algumas etnias e sagrados para os Papeis que acreditam que o poilão (Árvore
frondosa onde se extrai uma espécie de sumaúma) e os abutres chegam
a viver mais de trezentos anos.
À
noite a certeza de um maciço ataque de mosquitos que só as redes conseguem
amenizar um pouco mas ainda pode acontecer uma invasão da caserna por bandos de
morcegos cegos
pela iluminação ou ainda a natural intrusão de
outros animais como ratos alguns de tamanho considerável e superior a muitos
coelhos cujo atrevimento levava a introduzirem-se nas camas.
Ataques
de formigas das mais diversas espécies e tamanhos eram igualmente muito
frequentes, sendo a Baga-Baga a mais conhecida (Termiteira, monte de terra
muito resistente construído por formigas gigantes) “ bu sinta
riba di baga baga-bu na rui com” (você está sentado em cima da
termiteira e fala mal do chão) “provérbio crioulo”.
Para
completar esta diversidade de animais, adoptei um esquilo que por ser muito
novo, alimentei-o a leite, improvisando um biberão feito com uma garrafa de
cerveja à qual adaptei uma chucha
Na
falta do tradicional cão, existia no quartel um macaco de nome banzé, que
funcionava como mascote da companhia.
Ao domingo,
proporcionava-nos momentos de boa disposição e entretenimento com as suas
tropelias e deambulações provocadas pela ingestão de whisky brandi e bagaço que
lhe colocávamos num prato e que sofregamente devorava.
Depois,
já completamente embriagado, era colocado na boca um cigarro que depois de
acesso, lhe provocava um comportamento com cenas indiscritíveis e hilariantes.
Sair
para o exterior do arame farpado sem ser inserido num grupo e devidamente
armado, era muito complicado no entanto, algumas vezes havia uma certa
tendência para se facilitar um pouco infringindo as normas básicas de
segurança.
Certo
dia, logo após o almoço e juntamente com outro camarada resolvemos dar uma
volta pelo exterior do quartel, não muito distante do arame farpado, em volta
ao seu perímetro.
A determinada altura,
verificamos que junto a um pequeno lago causado pela chuva se encontrava um
felino com algum porte, depois constatámos tratar-se de uma onça bebendo e
assim que se apercebeu da nossa presença, fixou-nos, demonstrando quais os seus
reais intentos, iniciando de seguida a sua marcha acelerada na nossa direcção.
Momento
muito complicado porque sabia ser um animal extremamente perigoso e veloz mesmo
em curtas distâncias.
Assim e após o
primeiro choque não nos restavam muitas alternativas e qualquer atitude a tomar
não nos deixava muito tempo disponível se queríamos sair dali vivos.
O
primeiro disparo não foi suficiente para a abater e só com uma reacção muito
rápida, muita sorte e algum sangue frio conseguimos depois de disparar mais
alguns tiros eliminar de vez o animal.
Este
tiroteio causou alguma perturbação dentro do quartel porque os camaradas de
serviço nos postos de reforço sabiam da nossa presença e pensaram que algo bem
mais complicado poderia estar a acontecer.
Por
força das elevadas temperaturas que se faziam sentir a seguir ao almoço, esse
período era também aproveitado para colocar a escrita em dia, escrevendo aos
familiares, amigos, namorada, madrinhas de guerra ou simples correspondentes,
dando resposta aos aerogramas (corta-capins) que chegaram durante a
manhã.
Ao fim
da tarde, quando a agressividade das elevadas temperaturas menos se faziam
sentir, também aproveitava-mos para praticar alguma modalidade desportiva, são
exemplo o (futebol, voleibol ou basquetebol) modalidades em que eram
organizados torneios internos entre oficiais, sargentos e praças e onde se
disputava a atribuição de trofeus.
Aproveitava-se
igualmente o fim da tarde para umas sessões práticas de condução, numas
improvisadas aulas que decorriam num espaço em terra batida existente no
interior do quartel, com as viaturas Unimog 404 ou 411 e o jipe da companhia e
foi desta forma que alguns como eu aprenderam a conduzir.
Ainda
descobrimos mais uma forma de passar-mos o tempo,” a guerra podia esperar”
em vez de enviar-mos os nossos rolos fotográficos para serem revelados no
exterior, adquirimos um kit para o efeito e improvisámos a montagem de um
laboratório fotográfico que funcionava numa sala situada no edifício do bar de
oficiais, aproveitando deste modo os conhecimentos de um camarada nesta área.
Aí,
eram reveladas as fotos a preto e branco com as quais elaborámos os nossos
álbuns de recordações e as fotos que enviávamos aos nossos familiares e amigos,
com algumas das quais, foram feitas montagens dando azo à nossa criatividade e
imaginação, criando entre outros, os nossos próprios postais de boas festas
Ainda
no que se refere ao lazer, creio que por uma ou duas vezes, fomos presenteados
com a exibição de filmes, cuja projecção da responsabilidade dos serviços
telecine do exército era feita â noite na parede lateral exterior de uma
caserna e interrompida frequentemente pelos rebentamentos das lâmpadas da máquina
de projectar causado por excesso de aquecimento e provocando algumas situações
no mínimo hilariantes, pela semelhança com um rebentamento de um qualquer
disparo de arma IN.
Para
meu entretenimento musical possuía um rádio a pilhas que para uma melhor recepção,
estava ligado por um fio ao mastro da antena do serviço de transmissões,
tentando captar o melhor sinal de algum emissor de Lisboa, na tentativa de
ouvir
os relatos de futebol emitidos ao domingo à
tarde, acompanhando o meu clube preferido e à noite ouvir o programa de discos
pedidos emitido pela rádio Bissau, apresentado e realizado pelo bem conhecido
radialista João Paulo Diniz.
Recordo
que na altura um dos grandes êxitos musicais junto dos militares era a canção
do Gianni Morandi “Non son degno di te” ou ainda a do Paco Bandeira com
o título “Lá longe onde o sol castiga mais”
A
propósito da música de Gianni Morandi, recordo uma forma engraçada do
apresentador, expressar em crioulo o pedido solicitado por um militar africano
e que era pronunciado deste modo (Para João Seissi Djaló que firma na
tabanca de Catió, vai cantar Gianni Morandi, No sou digno de bó).
O
final de cada dia também nos proporcionava o registo na memória visual e
fotográfica de espectaculares imagens de um pôr de Sol, momentos simplesmente
mágicos que só África nos pode oferecer.
A
contrastar as imagens de tempestades tropicais normalmente acompanhadas de fortes
trovoadas, cujas descargas eléctricas se confundiam por vezes com os
rebentamentos e que igualmente provocaram vítimas, a elevada precipitação e as
fortíssimas rajadas de vento capazes de arrancar algumas chapas de zinco que
serviam de telhado às casernas, eram outro espectáculo tão digno de assistir
como de respeitar.
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