quinta-feira, 10 de maio de 2012

GUINÉ- BACHILE 1972-1974 VII








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 Muitas foram as vezes em que nos momentos mais folgados e descontraídos se organizaram jogos de futebol em que as enfermeiras pára-quedistas se inseriam, alinhando distribuídas pelas duas equipas.

Os últimos meses deste ano de 1972, foram bastante férteis em acontecimentos vários causando algumas situações complicadas, vividas com maior ou menor dificuldade motivados pelo aumento das acções do IN, “Festival” (ataque aparatoso ou flagelação do PAIGC a aquartelamento ou destacamento das NT.)

São exemplo disso, os ataques junto ao arame ou as emboscadas durante as deslocações no exterior do Bachile que resultaram em três mortos e diversos feridos.

O abandono de todos os elementos africanos da companhia durante a noite, provocado pela não satisfação de uma reivindicação, deixou à mercê de um assalto à mão armada por parte dos turras, os trinta elementos portugueses no quartel.

O incêndio na viatura Mercedes quando fazia o percurso entre Bachile e Teixeira Pinto, à qual foi necessário mesmo depois de completamente destruída pelo fogo, proceder a uma operação de segurança durante longas horas passadas à sombra de um cajueiro, de um mangueiro ou bem encostado a um Baga-Baga, com uma guarnição de poucos elementos, apenas equipados com G3 e em sério risco de sermos neutralizados.

O violentíssimo ataque a que foi sujeito um grupo de trabalhadores escoltados pelas nossas tropas, quando capinavam parte do percurso junto á estrada que ligava Teixeira Pinto ao Bachile.



 O que aconteceu com um pelotão da nossa companhia que numa saída de rotina, por erro de orientação se perdeu no mato, só conseguindo regressar após longas horas e já com o grupo bastante fragmentado, com o auxílio do lançamento de very lites que indicavam a nossa localização, não causando este incidente consequências mais graves do que um grande susto para todos.

Outra situação bastante caricata aconteceu quando dois pelotões em patrulha no mato se atacaram mutuamente devido a um erro de coordenadas e de alteração da hora de passagem em determinado ponto.







A arma que me estava distribuída, um morteiro 81mm estava colocada num abrigo localizado à esquerda da caserna, onde em caso de ataque era necessário chegar rápido e em segurança de forma a dar resposta ao IN, até que este batesse em retirada.

Simultaneamente também tinha de estar atento à necessidade em prestar apoio, disponibilizando lençóis e cobertores que serviam para envolver as eventuais vítimas das NT.

Algumas vezes e numa completa ausência de sentido do perigo, o trajecto entre o local onde se situava o espaldão do morteiro e a arrecadação era percorrido debaixo de intenso fogo, fazendo aumentar o perigo o facto de a arrecadação estar sempre lotada de granadas, munições e outros explosivos.

Os grupos que nos atacavam tinham origem na mata da Caboiana zona onde o PAIGC possuía bases militares bem desenvolvidas e muito bem organizadas que serviam para se adequarem a novos dispositivos tácticos e estratégicos no chão Manjaco, onde já era evidente um certo desfalecimento devido à campanha de Spínola “ Por uma Guiné melhor “.







A sua localização bem próxima da nossa unidade, aliado ao facto de alguns dos elementos inseridos no grupo de guerrilheiros serem familiares de militares ao serviço das NT, facilitava o conhecimento em pormenor das nossas instalações e dos nossos hábitos, que pontualmente procurávamos diversificar.

Por estratégia de guerra, o comandante-chefe general António Spínola, tinha mandado pintar todos os edifícios do quartel de cor branca, que associado ao facto de se encontrarem a um nível ligeiramente elevado em relação ao terreno tornava-nos num alvo facilmente detectável particularmente em noites de intenso luar.

Nesta altura o IN, também já contava com a óptima colaboração de grupos de mercenários cubanos, orientados pelo célebre capitão Peralta, participando em acções no terreno e ministrando treino de guerrilha subversiva aos africanos do PAIGC.

Com a colaboração destes elementos em grupos que efectuavam ataques ou emboscadas naquela zona da Guiné, a situação agravou-se evidenciando ainda mais a nossa já frágil condição.

Após os primeiros contactos com a guerra efectiva, somos invadidos por vários sentimentos, entre os quais os da solidariedade e da cumplicidade, de uma forma só entendida entre os militares mas também, o sentimento de estar numa guerra onde ninguém pediu para ir, numa luta que se sabia não ser contra o nosso povo mas sim contra um regime político, onde se matava para não morrer, porque esta era a única forma de voltar para casa mais cedo, de um lugar onde tinha-mos entrado de pé mas corríamos o risco de vir para o continente deitado num caixote de madeira.

No entanto, felizmente também houve momentos bem mais positivos e agradáveis que fizeram parte dos acontecimentos vividos. Ainda durante este ano e independentemente da situação 




 e do estado de espírito, havia sempre motivo para a realização de uma festa, quer fosse para comemorar o aniversário de um companheiro, celebrar a chegada de um periquito ou comemorar o fim de comissão de um velhinho, eram motivo mais que suficiente para a organização de um evento.
Uma grande petiscada era o mote para uma noite em cheio fazendo uma directa até de manhã, acompanhando uma boa sessão de anedotas ou uma noite de fados com vários intervenientes com algum jeito, mas onde o capitão Afonso, fazendo-se acompanhar da sua viola, brindava-nos com uma óptima actuação, particularmente no estilo canção de Coimbra.
A recepção aos periquitos tinha um significado de grande importância, porque indiciava o fim de comissão de um camarada e era festejado não só por aquele que ia ser substituído mas também partilhado pelos restantes que a ele se juntavam.
Logo que numa coluna chegada a Teixeira Pinto, fosse detectada a presença de um periquito, de imediato se procedia a uma comunicação via rádio para o Bachile, de modo a preparar a sua recepção e a praxe respectiva.
A tradição em praxar um elemento recém-chegado era praticada em toda a Guiné, porém na nossa companhia, considerando as suas características, este acto era efectuado de uma forma quase simbólica sem incluir qualquer atitude mais inconveniente que pudesse prejudicar alguém.
              O acto de praxar no Bachile resumia-se quase sempre a uma brincadeira onde se procedia à troca de divisas ou galões entre os vários elementos da companhia
               O soldado disfarçava-se de capitão, o sargento de alferes e o cabo de furriel de forma que a apresentação provocasse a maior confusão possível no periquito.
Também era habitual, quando da chegada da viatura que o transportava, desligar todas as luzes do quartel criando deste modo o cenário de um ambiente resultante da probalidade de um ataque que acontecia quase diariamente e como tal, esperava-se ainda vir a acontecer naquele dia.
Outra forma de praxar consistia em que após a confusão inicial gerada pela apresentação, elaborar uma escala de serviço, nomeando imediatamente o recém-chegado para um reforço de sentinela, atribuindo-lhe um dos postos mais distantes e em local considerado mais perigoso.
O periquito era acompanhado até lá por um de nós que no trajecto lhe ia relatando episódios fictícios de grande terror e violência, criando a ideia de se estar perante o pior dos cenários. Só chegados ao local se desmontava toda esta cena retomando a normalidade para completo descanso do recém-chegado.
Terminada a brincadeira, era tempo de com todo o cuidado preparar a integração do novo elemento fazendo sentir-se desde logo o mais apoiado possível, confraternizando com os restantes camaradas, petiscando qualquer coisa preparado à última hora ou mesmo na falta de outra coisa, o queijo, a chouriça, a broa ou o presunto que este acabara de trazer da terra.
Esta forma de receber revelava-se de extrema importância para a sua rápida integração e para que sentisse desde logo a confiança do restante grupo.
Também as festas de despedida eram organizadas ao pormenor, com ou sem a participação do directamente visado, tudo era preparado em devido tempo por um pequeno grupo onde nada era descurado, faziam-se convites executados em papel de uma forma personalizada, trabalhados e enriquecidos pela criatividade e imaginação de cada um e endereçados aos camaradas.
 
Um hábito muito frequente nos soldados africanos era o de logo que recebiam o seu vencimento, adquiriam sacos de bianda e outros géneros alimentares para sustento durante o resto do mês da quase sempre muito numerosa família.
Depois o restante dinheiro era gasto de uma forma desordenada muitas vezes em bens supérfluos e em vinho e cerveja o que provocavam frequente estados de cabeça grandes (bebedeira), ficando depressa sem dinheiro para o sustento da família durante os restantes dias.
Nessa altura, e sabendo que nós os metropolitanos estávamos sempre disponíveis para um petisco, ofereciam-se para ir caçar cabras de mato, javalis ou apanhar ostras.
Face à situação, as condições propostas para o negócio eram bastante favoráveis pois a troco de apenas cinquenta pesos, conseguia-se uma cabra de mato ou um javali já pronto para ir ao forno, tendo como única condição a cabeça pertencer ao caçador.
Um bidão cheio de ostras custava-nos os mesmos cinquenta pesos mas aqui tínhamos de providenciar o respectivo transporte.
Depois era pôr mãos à obra para conseguir junto do vago mestre, a oferta dos restantes ingredientes necessários para cozinhar os produtos e dar inicio ao evento.
Cabra de mato ou javali com batatas assados no forno de pedra onde habitualmente era cozido o pão, ostras cozidas ou grelhadas, servidas com um molho à base de muito sumo de limão e piripiri ou camarão grande igualmente cozido ou grelhado, eram ingredientes habituais das nossas reuniões gastronómicas.
Para lá do prazer do repasto, estes convívios serviam para reforçar o espírito de grupo e de grande camaradagem e amizade entre todos, onde os problemas ou as alegrias de uns eram partilhados por todos.
 
  Quantas vezes estando nós em plena confraternização, percebia-mos facilmente os efeitos dos ataques que os camaradas de unidades próximas estavam a ser alvo, mas e apesar da vontade de irmos em seu auxílio, restava-nos apenas acompanhar via rádio o desenrolar dos acontecimentos.
Porque ainda continuava a ter algum tempo disponível, em determinada altura o meu chefe directo, o sargento Guerreiro convidou-me para ficar com a responsabilidade da exploração do bar de sargentos, ideia que à partida me pareceu boa e aceitei.
Depois de me familiarizar com a orgânica do bar, foi-me recomendado que no final de cada mês era habitualmente efectuado um balanço contabilizando as compras e as vendas, cujo resultado devido aos preços praticados e ao fim a que se destinavam, não deveriam apresentar lucros superiores a pouco mais de cem escudos mensais, valor que revertia a favor dos cofres da companhia.
Os sargentos efectuavam os pagamentos dos géneros consumidos na sua maioria no final de cada mês e o seu consumo era controlado numa folha reservada a cada um dos vinte e três utentes.
Pretendi desde logo fazer uma boa gestão do bar e como a situação era propícia a fazer alguns pequenos negócios e por consequência aumentar os lucros, comecei a pôr em prática a minha experiência de bom caixeiro, começando por proceder à troca de latas de leite com chocolate, cujo preço era de 7$00, por um maço de cigarros Português Suave que custava apenas 2$50, ou ainda fazer com que um garrafão de dez litros de aguardente (água de Lisboa) resultasse na venda efectiva de vinte litros ao preço de tabela de 5$00 por cálice.
Também confeccionava algumas sobremesas (pudins, bolos, salada de frutas) com ingredientes do stock do bar, que adquiria em Bissau ou que me enviavam da metrópole.

No início de cada refeição anunciava a sobremesa do dia e o seu custo de forma a aguçar-lhes o apetite e tentar perceber quem eram os interessados.
Caso verificasse não haver grande receptividade, punha de imediato em marcha uma acção de “marketing”, activando uma promoção de forma a conseguir escoar o produto, tendo em conta que o lucro estava sempre garantido.
Com esta forma de gerir o bar os resultados foram sendo cada vez mais positivos e os lucros bem superiores aos previstos.
 No entanto, continuava a ser entregue nos cofres da companhia o valor habitual sendo o excedente utilizado em benefício próprio e da comunidade, revertendo igualmente para a organização de eventos de gastronomia e confraternização nocturna, onde o consumo de camarão tigre, de ostras, de sapateiras, de santolas etc, era gratuito sob condição das bebidas consumidas serem paga entre todos.
Os géneros vendidos no bar eram previamente encomendados aos serviços de manutenção militar em Bissau e entregues quando dos reabastecimentos habituais à companhia.
Para prevenir eventuais falhas de reabastecimento, tinha sempre um pequeno stock de alguns géneros de maior consumo e também de algum whisky, não só para consumo pessoal, como para vender ou trazer para a metrópole, já que sendo um artigo isento de IT (imposto de transacção) o preço de custo era bem convidativo comparado com o que aqui era praticado na altura, recordo-me que a primeira vez que bebi whisky, foi na Guiné onde se adquiria Dimple, Antiquary, Monks ou do Old Parr, por cerca de 100 pesos por garrafa, enquanto os whiskys novos, tipo Johnnie Walker, andavam por metade do preço.





















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