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Muitas foram as vezes
em que nos momentos mais folgados e descontraídos se organizaram jogos de
futebol em que as enfermeiras pára-quedistas se inseriam, alinhando
distribuídas pelas duas equipas.
Os
últimos meses deste ano de 1972, foram bastante férteis em acontecimentos
vários causando algumas situações complicadas, vividas com maior ou menor
dificuldade motivados pelo aumento das acções do IN, “Festival” (ataque
aparatoso ou flagelação do PAIGC a aquartelamento ou destacamento das NT.)
São exemplo disso, os
ataques junto ao arame ou as emboscadas durante as deslocações no exterior do
Bachile que resultaram em três mortos e diversos feridos.
O
abandono de todos os elementos africanos da companhia durante a noite,
provocado pela não satisfação de uma reivindicação, deixou à mercê de um
assalto à mão armada por parte dos turras, os trinta elementos portugueses no
quartel.
O
incêndio na viatura Mercedes quando fazia o percurso entre Bachile e Teixeira
Pinto, à qual foi necessário mesmo depois de completamente destruída pelo fogo,
proceder a uma operação de segurança durante longas horas passadas à sombra de
um cajueiro, de um mangueiro ou bem encostado a um Baga-Baga, com uma guarnição
de poucos elementos, apenas equipados com G3 e em sério risco de sermos
neutralizados.
O
violentíssimo ataque a que foi sujeito um grupo de trabalhadores escoltados
pelas nossas tropas, quando capinavam parte do percurso junto á estrada que
ligava Teixeira Pinto ao Bachile.
O que aconteceu com um pelotão da nossa
companhia que numa saída de rotina, por erro de orientação se perdeu no mato,
só conseguindo regressar após longas horas e já com o grupo bastante
fragmentado, com o auxílio do lançamento de very lites que indicavam a nossa
localização, não causando este incidente consequências mais graves do que um
grande susto para todos.
Outra
situação bastante caricata aconteceu quando dois pelotões em patrulha no mato
se atacaram mutuamente devido a um erro de coordenadas e de alteração da hora
de passagem em determinado ponto.
A
arma que me estava distribuída, um morteiro 81mm estava colocada num abrigo localizado
à esquerda da caserna, onde em caso de ataque era necessário chegar rápido e em
segurança de forma a dar resposta ao IN, até que este batesse em retirada.
Simultaneamente
também tinha de estar atento à necessidade em prestar apoio, disponibilizando
lençóis e cobertores que serviam para envolver as eventuais vítimas das NT.
Algumas
vezes e numa completa ausência de sentido do perigo, o trajecto entre o local
onde se situava o espaldão do morteiro e a arrecadação era percorrido debaixo
de intenso fogo, fazendo aumentar o perigo o facto de a arrecadação estar
sempre lotada de granadas, munições e outros explosivos.
Os
grupos que nos atacavam tinham origem na mata da Caboiana zona onde o PAIGC
possuía bases militares bem desenvolvidas e muito bem organizadas que serviam
para se adequarem a novos dispositivos tácticos e estratégicos no chão Manjaco,
onde já era evidente um certo desfalecimento devido à campanha de Spínola “ Por
uma Guiné melhor “.
A
sua localização bem próxima da nossa unidade, aliado ao facto de alguns dos
elementos inseridos no grupo de guerrilheiros serem familiares de militares ao
serviço das NT, facilitava o conhecimento em pormenor das nossas instalações e
dos nossos hábitos, que pontualmente procurávamos diversificar.
Por
estratégia de guerra, o comandante-chefe general António Spínola, tinha mandado
pintar todos os edifícios do quartel de cor branca, que associado ao facto de
se encontrarem a um nível ligeiramente elevado em relação ao terreno
tornava-nos num alvo facilmente detectável particularmente em noites de intenso
luar.
Nesta
altura o IN, também já contava com a óptima colaboração de grupos de
mercenários cubanos, orientados pelo célebre capitão Peralta, participando em
acções no terreno e ministrando treino de guerrilha subversiva aos africanos do
PAIGC.
Com
a colaboração destes elementos em grupos que efectuavam ataques ou emboscadas
naquela zona da Guiné, a situação agravou-se evidenciando ainda mais a nossa já
frágil condição.
Após
os primeiros contactos com a guerra efectiva, somos invadidos por vários
sentimentos, entre os quais os da solidariedade e da cumplicidade, de uma forma
só entendida entre os militares mas também, o sentimento de estar numa guerra
onde ninguém pediu para ir, numa luta que se sabia não ser contra o nosso povo
mas sim contra um regime político, onde se matava para não morrer, porque esta
era a única forma de voltar para casa mais cedo, de um lugar onde tinha-mos
entrado de pé mas corríamos o risco de vir para o continente deitado num
caixote de madeira.
No
entanto, felizmente também houve momentos bem mais positivos e agradáveis que
fizeram parte dos acontecimentos vividos. Ainda durante este ano e
independentemente da situação
e do estado de espírito, havia sempre motivo
para a realização de uma festa, quer fosse para comemorar o aniversário de um
companheiro, celebrar a chegada de um periquito ou comemorar o fim de comissão
de um velhinho, eram motivo mais que suficiente para a organização de um
evento.
Uma
grande petiscada era o mote para uma noite em cheio fazendo uma directa até de
manhã, acompanhando uma boa sessão de anedotas ou uma noite de fados com vários
intervenientes com algum jeito, mas onde o capitão Afonso, fazendo-se
acompanhar da sua viola, brindava-nos com uma óptima actuação, particularmente
no estilo canção de Coimbra.
A
recepção aos periquitos tinha um significado de grande importância, porque
indiciava o fim de comissão de um camarada e era festejado não só por aquele
que ia ser substituído mas também partilhado pelos restantes que a ele se
juntavam.
Logo
que numa coluna chegada a Teixeira Pinto, fosse detectada a presença de um
periquito, de imediato se procedia a uma comunicação via rádio para o Bachile,
de modo a preparar a sua recepção e a praxe respectiva.
A
tradição em praxar um elemento recém-chegado era praticada em toda a Guiné,
porém na nossa companhia, considerando as suas características, este acto era
efectuado de uma forma quase simbólica sem incluir qualquer atitude mais
inconveniente que pudesse prejudicar alguém.
O acto de praxar no Bachile resumia-se quase
sempre a uma brincadeira onde se procedia à troca de divisas ou galões entre os
vários elementos da companhia
O soldado disfarçava-se de capitão, o sargento
de alferes e o cabo de furriel de forma que a apresentação provocasse a maior
confusão possível no periquito.
Também
era habitual, quando da chegada da viatura que o transportava, desligar todas
as luzes do quartel criando deste modo o cenário de um ambiente resultante da
probalidade de um ataque que acontecia quase diariamente e como tal, esperava-se
ainda vir a acontecer naquele dia.
Outra
forma de praxar consistia em que após a confusão inicial gerada pela
apresentação, elaborar uma escala de serviço, nomeando imediatamente o
recém-chegado para um reforço de sentinela, atribuindo-lhe um dos postos mais
distantes e em local considerado mais perigoso.
O
periquito era acompanhado até lá por um de nós que no trajecto lhe ia relatando
episódios fictícios de grande terror e violência, criando a ideia de se estar
perante o pior dos cenários. Só chegados ao local se desmontava toda esta cena
retomando a normalidade para completo descanso do recém-chegado.
Terminada
a brincadeira, era tempo de com todo o cuidado preparar a integração do novo
elemento fazendo sentir-se desde logo o mais apoiado possível, confraternizando
com os restantes camaradas, petiscando qualquer coisa preparado à última hora
ou mesmo na falta de outra coisa, o queijo, a chouriça, a broa ou o presunto
que este acabara de trazer da terra.
Esta
forma de receber revelava-se de extrema importância para a sua rápida
integração e para que sentisse desde logo a confiança do restante grupo.
Também
as festas de despedida eram organizadas ao pormenor, com ou sem a participação
do directamente visado, tudo era preparado em devido tempo por um pequeno grupo
onde nada era descurado, faziam-se convites executados em papel de uma forma
personalizada, trabalhados e enriquecidos pela criatividade e imaginação de
cada um e endereçados aos camaradas.
Um
hábito muito frequente nos soldados africanos era o de logo que recebiam o seu
vencimento, adquiriam sacos de bianda e outros géneros alimentares para
sustento durante o resto do mês da quase sempre muito numerosa família.
Depois
o restante dinheiro era gasto de uma forma desordenada muitas vezes em bens
supérfluos e em vinho e cerveja o que provocavam frequente estados de cabeça
grandes (bebedeira), ficando depressa sem dinheiro para o sustento da
família durante os restantes dias.
Nessa
altura, e sabendo que nós os metropolitanos estávamos sempre disponíveis para
um petisco, ofereciam-se para ir caçar cabras de mato, javalis ou apanhar
ostras.
Face
à situação, as condições propostas para o negócio eram bastante favoráveis pois
a troco de apenas cinquenta pesos, conseguia-se uma cabra de mato ou um javali
já pronto para ir ao forno, tendo como única condição a cabeça pertencer ao
caçador.
Um
bidão cheio de ostras custava-nos os mesmos cinquenta pesos mas aqui tínhamos
de providenciar o respectivo transporte.
Depois era pôr mãos à
obra para conseguir junto do vago mestre, a oferta dos restantes ingredientes
necessários para cozinhar os produtos e dar inicio ao evento.
Cabra
de mato ou javali com batatas assados no forno de pedra onde habitualmente era
cozido o pão, ostras cozidas ou grelhadas, servidas com um molho à base de
muito sumo de limão e piripiri ou camarão grande igualmente cozido ou grelhado,
eram ingredientes habituais das nossas reuniões gastronómicas.
Para
lá do prazer do repasto, estes convívios serviam para reforçar o espírito de
grupo e de grande camaradagem e amizade entre todos, onde os problemas ou as
alegrias de uns eram partilhados por todos.
Quantas vezes estando nós em plena
confraternização, percebia-mos facilmente os efeitos dos ataques que os
camaradas de unidades próximas estavam a ser alvo, mas e apesar da vontade de
irmos em seu auxílio, restava-nos apenas acompanhar via rádio o desenrolar dos
acontecimentos.
Porque
ainda continuava a ter algum tempo disponível, em determinada altura o meu
chefe directo, o sargento Guerreiro convidou-me para ficar com a
responsabilidade da exploração do bar de sargentos, ideia que à partida me
pareceu boa e aceitei.
Depois
de me familiarizar com a orgânica do bar, foi-me recomendado que no final de
cada mês era habitualmente efectuado um balanço contabilizando as compras e as
vendas, cujo resultado devido aos preços praticados e ao fim a que se
destinavam, não deveriam apresentar lucros superiores a pouco mais de cem
escudos mensais, valor que revertia a favor dos cofres da companhia.
Os
sargentos efectuavam os pagamentos dos géneros consumidos na sua maioria no
final de cada mês e o seu consumo era controlado numa folha reservada a cada um
dos vinte e três utentes.
Pretendi
desde logo fazer uma boa gestão do bar e como a situação era propícia a fazer
alguns pequenos negócios e por consequência aumentar os lucros, comecei a pôr
em prática a minha experiência de bom caixeiro, começando por proceder à troca
de latas de leite com chocolate, cujo preço era de 7$00, por um maço de
cigarros Português Suave que custava apenas 2$50, ou ainda fazer com que um
garrafão de dez litros de aguardente (água de Lisboa) resultasse na
venda efectiva de vinte litros ao preço de tabela de 5$00 por cálice.
Também
confeccionava algumas sobremesas (pudins, bolos, salada de frutas) com
ingredientes do stock do bar, que adquiria em Bissau ou que me enviavam da
metrópole.
No
início de cada refeição anunciava a sobremesa do dia e o seu custo de forma a
aguçar-lhes o apetite e tentar perceber quem eram os interessados.
Caso
verificasse não haver grande receptividade, punha de imediato em marcha uma
acção de “marketing”, activando uma promoção de forma a conseguir escoar o
produto, tendo em conta que o lucro estava sempre garantido.
Com
esta forma de gerir o bar os resultados foram sendo cada vez mais positivos e
os lucros bem superiores aos previstos.
No entanto, continuava a ser entregue nos
cofres da companhia o valor habitual sendo o excedente utilizado em benefício
próprio e da comunidade, revertendo igualmente para a organização de eventos de
gastronomia e confraternização nocturna, onde o consumo de camarão tigre, de
ostras, de sapateiras, de santolas etc, era gratuito sob condição das bebidas
consumidas serem paga entre todos.
Os
géneros vendidos no bar eram previamente encomendados aos serviços de
manutenção militar em Bissau e entregues quando dos reabastecimentos habituais
à companhia.
Para
prevenir eventuais falhas de reabastecimento, tinha sempre um pequeno stock de
alguns géneros de maior consumo e também de algum whisky, não só para consumo
pessoal, como para vender ou trazer para a metrópole, já que sendo um artigo
isento de IT (imposto de transacção) o preço de custo era bem
convidativo comparado com o que aqui era praticado na altura, recordo-me que a
primeira vez que bebi whisky, foi na Guiné onde se adquiria Dimple, Antiquary,
Monks ou do Old Parr, por cerca de 100 pesos por garrafa, enquanto os whiskys
novos, tipo Johnnie Walker, andavam por metade do preço.
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