segunda-feira, 7 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE 1972-1974 V









    No início da comissão, começo por registar numa pequena agenda de bolso que ainda hoje guardo como mais uma recordação desse período, a contagem dos dias já cumpridos e dos que ainda faltavam para o final da comissão, além de outros apontamentos de interesse pessoal.
Era uma prática bastante usual pela maioria dos militares, pelo prazer que sentiam no final de cada dia poder riscar mais um do calendário.
Receber e responder aos aerogramas, era igualmente muito importante porque, não só contribuía imenso para ajudar a ocupar parte do nosso tempo, mas também porque nos mantinha mais próximos dos nossos, recebendo notícias da terra, da família e dos amigos e enviando notícias mais credíveis sobre os verdadeiros acontecimentos vividos no terreno, algo diferentes por vezes daquelas que eram divulgadas e muitas vezes deturpadas pelos meios de comunicação social na altura afectos ao regime, altamente censuradas e controladas pela PIDE-DGS. (Policia Internacional de Defesa do Estado- Direcção Geral de Segurança)
Algumas vezes fui confrontado com recortes de jornais enviados pelos meus familiares e amigos, onde se transcreviam notícias ou comunicados sobre o conflito, relatando alguns acontecimentos, onde sobressaía muita inverdade ou contendo enormes distorções sobre os factos reais.
A necessidade que tínhamos de receber correio era enorme, funcionava como se fosse a nossa vitamina, a força extra que muito ajudava a ultrapassar as dificuldades, a sua necessidade era comparada com a de comer ou beber, por isso a troca de correspondência abrangia um leque muito maior de outras pessoas, para além dos nossos familiares e amigos.







Na altura existiam no mercado algumas revistas de actualidade como a Plateia ou a Crónica Feminina, que incluíam secções destinadas à troca de correspondência com militares a prestar serviço no ultramar.

Simultaneamente, criou-se com o apoio do M.N.F, (Movimento Nacional Feminino) um movimento colectivo das chamadas ”madrinhas de guerra”.

Este tipo de contacto ia para além da troca de correspondência com mulheres portuguesas, também as brasileiras e de outras nacionalidades se disponibilizavam a manter contacto com os militares dando-lhe o necessário apoio.

Este movimento de troca assídua de correspondência e de grande apoio moral resultou nalguns casos em casamentos ainda hoje bem sucedidos.

Mantive durante muito tempo, prolongando-se mesmo até muito depois de terminada a comissão, troca de correspondência frequente com várias jovens portuguesas e também com uma de nacionalidade mexicana, natural da região de Acapulco e ainda com outra francesa da região do Cantal.

Destes relacionamentos, para além da demonstração de uma grande amizade e apoio moral, ficou a recordação de algumas lembranças com que me presenteavam e que ainda hoje preservo.

De salientar que as jovens de países estrangeiros, tinham uma visão muito particular e definida sobre o conflito onde estávamos inseridos e uma admiração muito grande por todos os militares.

Igualmente neste período fui muito apoiado pelos elementos do grupo desportivo da empresa onde trabalhava (Baptista Russo & Irmão), na pessoa do colega Saul Monteiro, responsável pelo contacto com os colegas no ultramar, que pontualmente fazia chegar alguns jornais desportivos acompanhados de uns postais

 ilustrados e muito bem-humorados para ajudar a manter a boa disposição.
Por isso todo o tipo de correspondência recebida, revestia-se de extrema importância e o seu conteúdo provocava quase sempre um efeito altamente positivo na manutenção da moral.
Por volta das dez da manhã, quase diariamente chegava a Teixeira Pinto vindo de Bissau, a DO27 (avionetas de fabrico Alemão) com os sacos de correio particular e oficial para serem distribuídos pelas diversas unidades da zona.




Por vezes as robustas e funcionais avionetas alemãs, comandadas por excelentes pilotos acusavam o desgaste de muitas horas de voo e viam-se forçadas a aterrar de emergência em campos de terra batida ou nas estradas de asfalto como sucedeu em Agosto na via que ligava Teixeira Pinto ao Cacheu
Daí que quando por qualquer anomalia ou desfasamento entre a selecção no SPM (serviço postal militar) e a saída das viaturas, o saco do correio não aparecia como habitualmente, tentávamos através dos camaradas do serviço de transmissões saber qual a previsão para a sua chegada a Teixeira Pinto, para que depois de conseguida a sempre difícil autorização do comandante de companhia, para o ir buscar mobilizando alguns voluntários para uma improvisada escolta montada no Burrinho do mato (viatura automóvel unimog modelo 404ou411) muito mal equipados e em condições de segurança deficientes, facilitando de alguma forma a possibilidade de corrermos sérios riscos em sofrer-mos uma emboscada.
Levantado o saco do correio sem mais demoras iniciava-se a viagem de regresso ao Bachile para que rapidamente pudesse ser distribuído e devorado por todos.


Noutras ocasiões em que as dificuldades eram mais evidentes e não era de todo recomendável as deslocações, chegámos a receber o correio trazido por um avião DO 27, que lançava o saco sobre a parada.

Como atrás refiro era extremamente importante para todos receber ou enviar correio.








Pessoalmente, escrevia imenso porque tinha até alguma facilidade em fazê-lo hábito que provavelmente adquiri no período em que frequentei a escola comercial, onde a disciplina de português, era muito levada a sério, com um elevado grau de exigência e com muita motivação por parte do professor, consegui ser um razoável aluno.

 Naturalmente por esse motivo, algumas vezes depois de despachar o meu correio, era ainda solicitado por outros camaradas a faze-lo sempre que, por qualquer motivo de saúde ou de outra ordem, não estivessem em condições de o fazer.

Não privar de noticias os seus mais próximos, mesmo quando as mesmas eventualmente não fossem as mais animadoras, era preferível a uma total ausência de correio.

Decorridos que estavam os primeiros meses de adaptação a uma nova realidade, ultrapassado o stress provocado pelas diversas alterações de ambiente, de modo de vida e vencidos os naturais receios dos primeiros tempos, aplicando na prática os cuidados normais que a situação exigia, entra-se numa fase considerada de alguma normalidade e até mesmo de certa descontracção, dependendo muito este estado de espírito do poder de reacção de cada um.

O relacionamento com os militares africanos, nem sempre foi isento de dificuldades, no entanto com alguns foi mais fácil, particularmente com a classe de furriéis milicianos que demonstravam já uma outra atitude face à situação, facilitando
o contacto e inserindo-se muito melhor entre nós por serem pessoas mais evoluídas e de espírito mais aberto, tinham uma visão mais esclarecida, mais informada e mais realista sobre os acontecimentos.
Muitas horas foram passadas à conversa com os africanos, permutando conhecimentos e experiências de vida com uma total disponibilidade.
Como não podia deixar de ser, nas longas conversas entre outros assuntos debatia-se a problemática da guerra, onde e ao contrário do que seria lógico esperar, nem sempre os pontos de vista eram tão divergentes.
Com outros, tornou-se mais difícil manter um bom relacionamento, penso que não só pela diferença de mentalidade, mas também pelo facto de estes estarem dispersos por etnias diversas, com personalidades, religiões, usos e costumes muito diferentes e complexos, que também entre eles dificultava manter uma convivência sociável.
Pessoalmente, talvez por força das funções que desempenhei, e da forma como encarei a situação, consegui manter uma relação muito equilibrada com quase todos, com alguns cheguei mesmo a criar alguma amizade compensada por pequenos actos de algum afecto não só deles como das suas famílias, traduzidos em ofertas dos mais diversificados artigos com relevância para os ovos, galinhas e outros, que guardava numa das divisões do depósito de géneros.
Por vezes a quantidade de ofertas era de tal ordem que o espaço onde as guardava, mais parecia um aviário, isto era o resultado de apenas algumas vezes ter facilitado a troca antecipada de umas camisas ou calças já bem usadas por outras novas antes da data prevista para a sua substituição.



Devo referir que a criação de companhias africanas, apenas com quadros metropolitanos, foi durante alguns anos considerada por muita gente, como uma situação de alto risco, considerando que na eventualidade de uma revolta os africanos em grande maioria poderiam facilmente dominar o aquartelamento.
Estas companhias existiam por força da ideia do general Spínola, acreditar que uma das soluções para o desfecho da guerra passava por uma maior intervenção dos naturais da Guiné.
Duas vezes por semana, realizava-se uma coluna militar entre Teixeira Pinto e Bissau que se iniciava de manhã muito cedo e o regresso verificava--se ao fim da tarde ou noite, dependendo dos acontecimentos e ocorrências surgidos durante a viagem.
Do Bachile, a hora da saída acontecia por volta das quatro horas da manhã, uma ou duas viaturas Berliet preparadas de véspera, transportavam além dos militares alguns civis que pelo caminho iam solicitando boleia.
Depois o grosso da coluna era formado em Teixeira Pinto, onde as viaturas civis e militares se intercalavam estrategicamente prevenindo eventuais emboscadas surgidas durante o percurso.
Normalmente as minhas deslocações tinham por finalidade tratar de assuntos referentes à logística da companhia ou outros de ordem pessoal e particular.
Na minha primeira visita à cidade da terra vermelha, não dispus de muito tempo para a conhecer, as diversas exigências de serviço e alguns assuntos particulares, deixavam pouca disponibilidade, porque à hora do regresso da coluna, havia que estar presente sob pena de ficar apeado.
No entanto a primeira impressão foi extremamente agradável, vi uma cidade pequena com evidentes carências de toda a ordem mas de grandes contrastes.




















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