Por vezes, sentia-se
necessidade em partilhar com alguém esses problemas.
À noite era também fundamental montar
cuidadosamente a rede mosquiteira na armação das nossas camas, porque caso
contrário era um desassossego completo não só pela perturbação causada pela
enorme quantidade de mosquitos mas também por outro género de visitantes
Numa zona de habitat natural de imensos
mosquitos que proliferavam aos milhões, espalhados por todo o lado na busca do
seu alimento o sangue humano, eram os mais incautos ou os periquitos as
principais vítimas, cujas picadas que para além de irritantes eram temidas pois
eram através delas que se transmitia o paludismo, uma doença extremamente
debilitante fisicamente e perigosa.
Nos ferros da estrutura das cabeceiras das
camas eram adaptadas ventoinhas dos mais diversos tamanhos para auxiliar a
suportar o calor e evitar o ataque dos parasitas.
Também era recomendado não afugentar as osgas
ou as salamandras que andassem no tecto das nossas casernas, pois elas eram
nossas amigas ajudando a eliminar os mosquitos.
Estamos já com mais de metade do ano decorrido
e as notícias vindas da metrópole relativas ao estado de saúde do meu pai não são
nada animadoras, bem pelo contrário.
Um dia sou chamado em privado ao gabinete do
comandante que tomando conhecimento da situação através de uma mensagem que me
enviaram com caracter de urgente, quis conversar comigo para se inteirar melhor
sobre o assunto.
O capitão Afonso, em colaboração com o
sargento Guerreiro, conversaram comigo pormenorizadamente sobre o problema e de
imediato me disponibilizaram todas as condições para o que fosse necessário, e
se assim entendesse, no dia seguinte poderia embarcar para a metrópole.
Ponderadas que foram algumas das várias
hipóteses apresentadas acabei por resolver vir passar um período de férias de
forma a acompanhar mais de perto a situação e em 18 de Agosto estava em Bissau
para apanhar o Boeing da TAP que me trazia até Lisboa onde permaneci até 25 de
Setembro.
Regressei nesta data ao Bachile, para cumprir
o que seriam provavelmente os últimos seis meses da minha comissão, perfeitamente
consciente de ter pela frente um período de tempo que se adivinhava ser de
imensos problemas para ultrapassar, mas convicto que o teria de conseguir
independentemente do meu estado de espírito.
A diversidade de acontecimentos ou de
iniciativas tanto de âmbito militar como particular, faziam com que a rotina
não tivesse espaço no nosso dia-a-dia, conseguindo manter preenchido quase a
totalidade do nosso tempo.
A Guiné apesar da sua simplicidade e pobreza,
continuava a oferecer-me muito do seu enorme potencial quer paisagístico quer
humano que absorvi muito intensamente durante a minha estada naquela terra e
que ainda hoje guardo na memória com muita saudade todos os momentos vividos.
O nascer de um novo dia, o cheiro
característico a terra sentido particularmente no interior, o sabor das
inúmeras variedades de frutos tropicais, a variedade de sons emitidos pelas
diversas espécies de animais, o esplendoroso pôr-do-sol, o ruído frenético
provocado por uma nuvem de insectos e particularmente a riqueza do contacto
humano, são algumas das minhas maiores referências.
As
populações que habitavam os locais mais próximos da zona onde se situava o meu
quartel, eram na sua grande maioria de etnia manjaca.
Estes,
eram de uma forma geral, bastante receptíveis e colaborantes, sentiam-se bem
protegidos pelos nossos elementos, porque os guerrilheiros quando apareciam,
matavam, saqueavam e destruíam tudo o que surgisse pela frente.
Mesmo assim o povo não deixava de trabalhar a
bolanha, (terreno algadisso, próprio para a cultura do arroz)
tarefa na sua maioria o cargo das mulheres, ou de familiares dos soldados ao
serviço da nossa companhia.
Os
Manjacos foram a etnia que eu melhor conheci, fruto de ter vivido quase dois
anos no seu chão (território étnico) e por consequência com eles ter
privado com maior proximidade.
Um
povo com uma das culturas mais ricas. Era fascinante a forma como desenvolviam
os seus próprios códigos de ética sem necessidade de serem impostos de uma
forma agressiva.
Os Manjacos, até mesmo nas situações de
infidelidade conjugal feminina, eram extremamente abertos pois a mulher não era
imediatamente rejeitada, mas sim submetida a um ritual que consistia na
realização de numa reunião efectuada num cruzamento de caminhos entre todos os
homens adultos da tabanca e entre estes e o marido decidiam se a perdoavam do
adultério.
Se perdoada, o casal se reunia de novo não
havendo lugar à mais pequena crítica entre os parentes, caso contrário cada um
seguia a sua vida numa decisão assumida publicamente por toda a tribo mas
isenta de quaisquer actos de violência.
Eram
normalmente as mulheres transportando os seus filhos às costas, que trabalhavam
na bolanha em condições muito difíceis e por vezes com água por cima dos
joelhos, enquanto os homens que não estavam inseridos nas forças armadas
ficavam na fazenda sentados à sombra de um mangueiro ou de uma
palmeira, improvisando um espantalho e com o
auxílio de uma extensa cana, afugentavam os macacos e outros animais das suas plantações
que destruíam os seus bens agrícolas, ou então permaneciam junto à tabanca
aguardando a hora da oração, virando-se para Meca rezando a Alá.
Também eram elas as nossas lavadeiras que a
troco de alguns pesos e géneros alimentares, cuidavam com esmero da nossa roupa
que lavavam nas pedras junto ao rio e engomavam com o auxílio de um ferro
aquecido por brasas.
Nas nossas deslocações à cidade, era hábito
trazer-lhes algumas lembranças em particular quando por ocasião do seu
aniversário ou também no final da nossa comissão.
De um modo geral os guinéus, apesar das
diferentes etnias, eram um povo amável e hospitaleiro que bem mereciam o nosso
apoio e amizade, e segundo relatos de visitas recentemente efectuadas por ex.
combatentes àquele território, assim continuam não sendo visíveis quaisquer
ressentimentos do passado.
Este bom relacionamento com grande parte da
população, criou alguns laços de grande proximidade entre os militares e as
suas famílias, por isso eram frequentes os convites para estar-mos presentes
nas suas festas tradicionais ou choros (conjunto de rituais) caracterizadas
por belas e coloridas coreografias e manifestações culturais que podiam ser
observadas na altura das colheitas, na celebração de casamentos ou de funerais
e ainda nos rituais de iniciação de parentes, vizinhos ou amigos e que
proporcionava a apresentação do que de melhor tinham para comer e vestir.
No
casamento de um filho, no fanado (festa da circuncisão, ritual da passagem
da puberdade para a vida adulta) ou nas cerimónias associadas à M G F (mutilações
genitais femininas), praticadas por fanatecas (mulher que pratica a
mutilação genital feminina)
ainda muito em prática nalgumas das trinta
étnias entre as quais os Fulas, Balantas, Mandingas e outros islamisados.
Apesar de já existir legislação na Guiné
Bissau proibindo a MGF, este acto continua a ser praticado em grande parte do
território e em condições muito precárias, utilizando navalhas, canivetes e até
pedaços de vidro sem condições mínimas de higiene, sendo a causa de
consequências médicas e psicológicas em mais de 250 mil mulheres anualmente,
provocando lesões que no futuro podem vir a facilitar a transmissão do vírus
HIV.
A
festa fazia parte do quotidiano do povo da Guiné e nestas nunca podia faltar o
seu instrumento típico, o Bombomlom (instrumento musical, espécie de
tamborim feito a partir do côncavo de um tronco de árvore)
É também uma festa na tabanka, o dia em que as
raparigas de religião Animista (que praticam o culto do irã, ser
sobrenatural) são atraídas pelos tambores e danças, correndo na companhia
das amigas muçulmanas, em direcção ao local do fanado com os corpos pintados
com farinha de arroz e pó de talco.
Os
Animistas acreditam que todos os elementos são passíveis de possuírem
sentimentos emoções, vontades ou desejos e até mesmo inteligência.
De uma forma simples e resumida os cultos
Animistas acreditam que: ”Todas as coisas são vivas”, “ Todas
as coisas são conscientes”
Para além deste género de contactos de
caracter particular com alguma população, outros haviam que, inseridos em
grupos étnicos mais afastadas no relacionamento com as nossas tropas
ou em zonas controladas pelos guerrilheiros,
sentiam uma grande necessidade de apoio e de cuidados de saúde, estando muito
dependentes de mezinhas e de outros actos praticados por feiticeiros.
Os responsáveis militares, atentos ao
fenómeno, puseram em prática a campanha que o governador e comandante-chefe
general António Spínola ordenara, iniciando junto dessa faixa da população uma
acção psicossocial cujo objectivo principal era provocar a conquista pela
aproximação às nossas forças.
A minha experiência e participação neste tipo
de acções, resumiu-se na inserção de um grupo que incluía mais três ou quatro
camaradas entre eles um oficial e um enfermeiro, devidamente uniformizados com
bata branca, que após o contactado com o chefe de tabanca ou com o homem grande
(chefe de família) íamos ouvir as principais queixas da população e
distribuindo alguns alimentos mais prementes, uns comprimidos LM, (laboratório
Militar) que serviam para curar todos os males.
Para além destes, também eram distribuídos
uns comprimidos de vitaminas cuja configuração se parecia com tremoços e que
eram exactamente os mesmos que nos eram fornecidos todas as semanas junto com
os de quinino que tomávamos para atacar o paludismo ou malária.
Decorridos alguns dias voltava-mos a visitar
as mesmas tabancas a fim de ouvirmos os seus testemunhos e percebermos qual a
reacção às nossas anteriores visitas.
Corpo
di bó? Era a pergunta típica que se fazia para saber
como se sentiam após a ingestão dos medicamentos.
Na
maioria dos casos as respostas eram bastante positivas porque entretanto a dor
de barriga, de cabeça ou da perna, tinha
desaparecido, o que na sua opinião confirmava
que remédio de branco era bom, tornando-se deste modo mais fácil a aproximação
aquela gente, ganhando confiança em nós e viabilizando desta forma a
possibilidade de serem devidamente acompanhados pela medicina convencional,
através dos nossos serviços.
Este tipo de acções tiveram para mim um grande
significado e foram extremamente gratificantes, porque proporcionaram-me a
oportunidade de um modo muito simples e próximo, perceber as reais necessidades
daquele povo em questões de saúde e poder ter tido o prazer de contribuir de
uma forma muito modesta para a melhoria das suas condições.
Sobre os cuidados de saúde ministrados às
populações, não posso deixar de referir que estes eram sempre prestados com
grande competência e extrema dedicação por todos os envolvidos apesar de todas
as carências e das deficientes condições de trabalho.
Casos de extrema urgência e gravidade eram
evacuados imediatamente para Bissau por via aérea ou terrestre conforme a
gravidade, mas por vezes efectuadas em deficientes condições de segurança.
A malária, o paludismo e as constantes
epidemias de cólera eram das doenças infecciosas que mais preocupavam as
autoridades sanitárias e as que mais vítimas provocavam na Guiné em particular
junto de crianças e idosos e que não obstante o nosso apoio estavam longe de
ser irradiadas.
As condições sanitárias e os programas de
vacinação eram demasiado deficientes e só os militares estavam mais protegidos
porque quando saíamos de Portugal já nos tinha sido ministrada a dose completa
de vacinas e apesar da ingestão semanal de comprimidos de quinino para combater
o paludismo, aconteceram
situações bem
complicadas com alguns dos camaradas.
Pessoalmente, apenas uma vez tive sintomas do
que parecia ser um forte ataque de paludismo que resolvi de uma forma pouco
correcta, não servindo esta receita de exemplo a seguir por ninguém, embora no
meu caso pelos vistos tivesse sido muito eficiente, reforçando a dose habitual
com mais dois comprimidos e um brandy Constantino.
Nunca falhei a dose semanal que nos era
distribuída, ao contrário de alguns que tinham ideias diferentes sobre os reais
efeitos secundários dos comprimidos e que não os tomando sofreram bastante no
corpo com essa sua atitude.
Felizmente e ao contrário do que seria
previsível pelos antecedentes enquanto mais jovem, não tive problemas de saúde
durante a minha permanência na Guiné, e apesar dos imensos erros
reconhecidamente cometidos, apenas uma simples dor de dentes fez com que me
deslocasse a Teixeira Pinto, para ser assistido por um alferes médico que após
um estágio de quinze dias em Bissau, na especialidade de estomatologia, foi
enviado para o mato para tratar e arrancar os dentes ao pessoal.
A consulta foi efectuada ao ar livre debaixo
de uma palmeira, sentado numa cadeira muito antiga e muito degradada, daquelas
que os barbeiros já não usavam. Após ter aplicado a anestesia, em deficientes
condições de apoio e higiene, extraiu-me com alguma dificuldade o dente
danificado.
Apesar de tudo os pós extracção não correu
mal, não houve dores nem hemorragias e logo de seguida regressei ao quartel,
apenas com a recomendação para bochechar com água morna com sal.
A água potável na Guiné era um luxo,
engarrafada só a Perrier que até era das mais baratas mas ainda assim
com um custo um pouco elevado.
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