sábado, 12 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE- 1972-1974 XII









 Por vezes, sentia-se necessidade em partilhar com alguém esses problemas.

 À noite era também fundamental montar cuidadosamente a rede mosquiteira na armação das nossas camas, porque caso contrário era um desassossego completo não só pela perturbação causada pela enorme quantidade de mosquitos mas também por outro género de visitantes

 Numa zona de habitat natural de imensos mosquitos que proliferavam aos milhões, espalhados por todo o lado na busca do seu alimento o sangue humano, eram os mais incautos ou os periquitos as principais vítimas, cujas picadas que para além de irritantes eram temidas pois eram através delas que se transmitia o paludismo, uma doença extremamente debilitante fisicamente e perigosa.

 Nos ferros da estrutura das cabeceiras das camas eram adaptadas ventoinhas dos mais diversos tamanhos para auxiliar a suportar o calor e evitar o ataque dos parasitas.

 Também era recomendado não afugentar as osgas ou as salamandras que andassem no tecto das nossas casernas, pois elas eram nossas amigas ajudando a eliminar os mosquitos.

 Estamos já com mais de metade do ano decorrido e as notícias vindas da metrópole relativas ao estado de saúde do meu pai não são nada animadoras, bem pelo contrário.

  Um dia sou chamado em privado ao gabinete do comandante que tomando conhecimento da situação através de uma mensagem que me enviaram com caracter de urgente, quis conversar comigo para se inteirar melhor sobre o assunto.

 O capitão Afonso, em colaboração com o sargento Guerreiro, conversaram comigo pormenorizadamente sobre o problema e de imediato me disponibilizaram todas as condições para o que fosse necessário, e se assim entendesse, no dia seguinte poderia embarcar para a metrópole.


 Ponderadas que foram algumas das várias hipóteses apresentadas acabei por resolver vir passar um período de férias de forma a acompanhar mais de perto a situação e em 18 de Agosto estava em Bissau para apanhar o Boeing da TAP que me trazia até Lisboa onde permaneci até 25 de Setembro.

 Regressei nesta data ao Bachile, para cumprir o que seriam provavelmente os últimos seis meses da minha comissão, perfeitamente consciente de ter pela frente um período de tempo que se adivinhava ser de imensos problemas para ultrapassar, mas convicto que o teria de conseguir independentemente do meu estado de espírito.

 A diversidade de acontecimentos ou de iniciativas tanto de âmbito militar como particular, faziam com que a rotina não tivesse espaço no nosso dia-a-dia, conseguindo manter preenchido quase a totalidade do nosso tempo.

 A Guiné apesar da sua simplicidade e pobreza, continuava a oferecer-me muito do seu enorme potencial quer paisagístico quer humano que absorvi muito intensamente durante a minha estada naquela terra e que ainda hoje guardo na memória com muita saudade todos os momentos vividos.

 O nascer de um novo dia, o cheiro característico a terra sentido particularmente no interior, o sabor das inúmeras variedades de frutos tropicais, a variedade de sons emitidos pelas diversas espécies de animais, o esplendoroso pôr-do-sol, o ruído frenético provocado por uma nuvem de insectos e particularmente a riqueza do contacto humano, são algumas das minhas maiores referências.

         As populações que habitavam os locais mais próximos da zona onde se situava o meu quartel, eram na sua grande maioria de etnia manjaca.

 
         Estes, eram de uma forma geral, bastante receptíveis e colaborantes, sentiam-se bem protegidos pelos nossos elementos, porque os guerrilheiros quando apareciam, matavam, saqueavam e destruíam tudo o que surgisse pela frente.
          Mesmo assim o povo não deixava de trabalhar a bolanha, (terreno algadisso, próprio para a cultura do arroz) tarefa na sua maioria o cargo das mulheres, ou de familiares dos soldados ao serviço da nossa companhia.
         Os Manjacos foram a etnia que eu melhor conheci, fruto de ter vivido quase dois anos no seu chão (território étnico) e por consequência com eles ter privado com maior proximidade.





         Um povo com uma das culturas mais ricas. Era fascinante a forma como desenvolviam os seus próprios códigos de ética sem necessidade de serem impostos de uma forma agressiva.
 Os Manjacos, até mesmo nas situações de infidelidade conjugal feminina, eram extremamente abertos pois a mulher não era imediatamente rejeitada, mas sim submetida a um ritual que consistia na realização de numa reunião efectuada num cruzamento de caminhos entre todos os homens adultos da tabanca e entre estes e o marido decidiam se a perdoavam do adultério.
 Se perdoada, o casal se reunia de novo não havendo lugar à mais pequena crítica entre os parentes, caso contrário cada um seguia a sua vida numa decisão assumida publicamente por toda a tribo mas isenta de quaisquer actos de violência.






         Eram normalmente as mulheres transportando os seus filhos às costas, que trabalhavam na bolanha em condições muito difíceis e por vezes com água por cima dos joelhos, enquanto os homens que não estavam inseridos nas forças armadas ficavam na fazenda sentados à sombra de um mangueiro ou de uma 

  palmeira, improvisando um espantalho e com o auxílio de uma extensa cana, afugentavam os macacos e outros animais das suas plantações que destruíam os seus bens agrícolas, ou então permaneciam junto à tabanca aguardando a hora da oração, virando-se para Meca rezando a Alá.
 Também eram elas as nossas lavadeiras que a troco de alguns pesos e géneros alimentares, cuidavam com esmero da nossa roupa que lavavam nas pedras junto ao rio e engomavam com o auxílio de um ferro aquecido por brasas.
 Nas nossas deslocações à cidade, era hábito trazer-lhes algumas lembranças em particular quando por ocasião do seu aniversário ou também no final da nossa comissão.
 De um modo geral os guinéus, apesar das diferentes etnias, eram um povo amável e hospitaleiro que bem mereciam o nosso apoio e amizade, e segundo relatos de visitas recentemente efectuadas por ex. combatentes àquele território, assim continuam não sendo visíveis quaisquer ressentimentos do passado.
 Este bom relacionamento com grande parte da população, criou alguns laços de grande proximidade entre os militares e as suas famílias, por isso eram frequentes os convites para estar-mos presentes nas suas festas tradicionais ou choros (conjunto de rituais) caracterizadas por belas e coloridas coreografias e manifestações culturais que podiam ser observadas na altura das colheitas, na celebração de casamentos ou de funerais e ainda nos rituais de iniciação de parentes, vizinhos ou amigos e que proporcionava a apresentação do que de melhor tinham para comer e vestir.
No casamento de um filho, no fanado (festa da circuncisão, ritual da passagem da puberdade para a vida adulta) ou nas cerimónias associadas à M G F (mutilações genitais femininas), praticadas por fanatecas (mulher que pratica a mutilação genital feminina)

 ainda muito em prática nalgumas das trinta étnias entre as quais os Fulas, Balantas, Mandingas e outros islamisados.
 Apesar de já existir legislação na Guiné Bissau proibindo a MGF, este acto continua a ser praticado em grande parte do território e em condições muito precárias, utilizando navalhas, canivetes e até pedaços de vidro sem condições mínimas de higiene, sendo a causa de consequências médicas e psicológicas em mais de 250 mil mulheres anualmente, provocando lesões que no futuro podem vir a facilitar a transmissão do vírus HIV.




         A festa fazia parte do quotidiano do povo da Guiné e nestas nunca podia faltar o seu instrumento típico, o Bombomlom (instrumento musical, espécie de tamborim feito a partir do côncavo de um tronco de árvore)
 É também uma festa na tabanka, o dia em que as raparigas de religião Animista (que praticam o culto do irã, ser sobrenatural) são atraídas pelos tambores e danças, correndo na companhia das amigas muçulmanas, em direcção ao local do fanado com os corpos pintados com farinha de arroz e pó de talco.
         Os Animistas acreditam que todos os elementos são passíveis de possuírem sentimentos emoções, vontades ou desejos e até mesmo inteligência.
 De uma forma simples e resumida os cultos Animistas acreditam que: ”Todas as coisas são vivas”, “ Todas as coisas são conscientes
 Para além deste género de contactos de caracter particular com alguma população, outros haviam que, inseridos em grupos étnicos mais afastadas no relacionamento com as nossas tropas

 ou em zonas controladas pelos guerrilheiros, sentiam uma grande necessidade de apoio e de cuidados de saúde, estando muito dependentes de mezinhas e de outros actos praticados por feiticeiros.
          Os responsáveis militares, atentos ao fenómeno, puseram em prática a campanha que o governador e comandante-chefe general António Spínola ordenara, iniciando junto dessa faixa da população uma acção psicossocial cujo objectivo principal era provocar a conquista pela aproximação às nossas forças.
 A minha experiência e participação neste tipo de acções, resumiu-se na inserção de um grupo que incluía mais três ou quatro camaradas entre eles um oficial e um enfermeiro, devidamente uniformizados com bata branca, que após o contactado com o chefe de tabanca ou com o homem grande (chefe de família) íamos ouvir as principais queixas da população e distribuindo alguns alimentos mais prementes, uns comprimidos LM, (laboratório Militar) que serviam para curar todos os males.
  Para além destes, também eram distribuídos uns comprimidos de vitaminas cuja configuração se parecia com tremoços e que eram exactamente os mesmos que nos eram fornecidos todas as semanas junto com os de quinino que tomávamos para atacar o paludismo ou malária.
 Decorridos alguns dias voltava-mos a visitar as mesmas tabancas a fim de ouvirmos os seus testemunhos e percebermos qual a reacção às nossas anteriores visitas.
        Corpo di bó? Era a pergunta típica que se fazia para saber como se sentiam após a ingestão dos medicamentos.
         Na maioria dos casos as respostas eram bastante positivas porque entretanto a dor de barriga, de cabeça ou da perna, tinha   

 desaparecido, o que na sua opinião confirmava que remédio de branco era bom, tornando-se deste modo mais fácil a aproximação aquela gente, ganhando confiança em nós e viabilizando desta forma a possibilidade de serem devidamente acompanhados pela medicina convencional, através dos nossos serviços.
 Este tipo de acções tiveram para mim um grande significado e foram extremamente gratificantes, porque proporcionaram-me a oportunidade de um modo muito simples e próximo, perceber as reais necessidades daquele povo em questões de saúde e poder ter tido o prazer de contribuir de uma forma muito modesta para a melhoria das suas condições.
 Sobre os cuidados de saúde ministrados às populações, não posso deixar de referir que estes eram sempre prestados com grande competência e extrema dedicação por todos os envolvidos apesar de todas as carências e das deficientes condições de trabalho.
 Casos de extrema urgência e gravidade eram evacuados imediatamente para Bissau por via aérea ou terrestre conforme a gravidade, mas por vezes efectuadas em deficientes condições de segurança.





 A malária, o paludismo e as constantes epidemias de cólera eram das doenças infecciosas que mais preocupavam as autoridades sanitárias e as que mais vítimas provocavam na Guiné em particular junto de crianças e idosos e que não obstante o nosso apoio estavam longe de ser irradiadas.
 As condições sanitárias e os programas de vacinação eram demasiado deficientes e só os militares estavam mais protegidos porque quando saíamos de Portugal já nos tinha sido ministrada a dose completa de vacinas e apesar da ingestão semanal de comprimidos de quinino para combater o paludismo, aconteceram  

situações bem complicadas com alguns dos camaradas.
 Pessoalmente, apenas uma vez tive sintomas do que parecia ser um forte ataque de paludismo que resolvi de uma forma pouco correcta, não servindo esta receita de exemplo a seguir por ninguém, embora no meu caso pelos vistos tivesse sido muito eficiente, reforçando a dose habitual com mais dois comprimidos e um brandy Constantino.
 Nunca falhei a dose semanal que nos era distribuída, ao contrário de alguns que tinham ideias diferentes sobre os reais efeitos secundários dos comprimidos e que não os tomando sofreram bastante no corpo com essa sua atitude.
 Felizmente e ao contrário do que seria previsível pelos antecedentes enquanto mais jovem, não tive problemas de saúde durante a minha permanência na Guiné, e apesar dos imensos erros reconhecidamente cometidos, apenas uma simples dor de dentes fez com que me deslocasse a Teixeira Pinto, para ser assistido por um alferes médico que após um estágio de quinze dias em Bissau, na especialidade de estomatologia, foi enviado para o mato para tratar e arrancar os dentes ao pessoal.
 A consulta foi efectuada ao ar livre debaixo de uma palmeira, sentado numa cadeira muito antiga e muito degradada, daquelas que os barbeiros já não usavam. Após ter aplicado a anestesia, em deficientes condições de apoio e higiene, extraiu-me com alguma dificuldade o dente danificado.
 Apesar de tudo os pós extracção não correu mal, não houve dores nem hemorragias e logo de seguida regressei ao quartel, apenas com a recomendação para bochechar com água morna com sal.
 A água potável na Guiné era um luxo, engarrafada só a Perrier que até era das mais baratas mas ainda assim com um custo um pouco elevado.


































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