sexta-feira, 11 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE -1972-1974 VIII








    Servido ao balcão do bar, um whisky novo simples custava apenas 2$50 sem água o que era mais barato que um bagaço ou uma cerveja.

Para adquirir o marisco, desloquei-me várias vezes ao Cacheu, cidade situada a Norte e a cerca de quinze quilómetros do Bachile, que durante a guerra foi palco de alguns ataques e hoje é uma das oito regiões em que a Guiné está dividida.

Normalmente deslocava-me numa viatura Unimog 404, acompanhada de um grupo de escolta constituído por três ou quatro voluntários e da respectiva caixa térmica que durante o transporte, mantinha o produto em boas condições.

No bar era cumprido um horário de funcionamento, embora por vezes fosse necessário abrir excepções. Quando isso acontecia ou por falta de disponibilidade minha, chegava inclusive a ceder a chave para que se servissem.

Não tinha necessidade de me preocupar demasiado com os abusos no consumo pois mantinha sempre o controle das existências, baseado numa regra simples e pouco falível.

Antes de me ausentar deixava o frigorífico e a arca carregados com quantidades exactas dos diversos tipos de bebidas.

No final bastava apenas conferir se as quantidades em falta correspondiam aos registos efectuados nas folhas individuais, pois sempre que se verificava alguma diferença entre as faltas no frigorífico e o respectivo registo nas folhas e não havendo quem se acusasse de se ter esquecido de anotar o consumo, resolvia a questão anunciando ir debitar uma bebida a cada um.

Assim fui fazendo até ao final da comissão a gestão do bar de sargentos sempre com óptimos resultados reconhecidos pelo sargento Guerreiro que como meu chefe era também cúmplice neste negócio

Por isso com o tempo adquiri alguns conhecimentos e gosto por aquela actividade, em consequência fui algumas vezes convidado a servir bebidas no bar de oficiais, particularmente
 quando recebia-mos a visita de jornalistas nacionais ou estrangeiros que faziam a cobertura da guerra para os diversos meios de comunicação, ou outras individualidades civis e militares que pontualmente nos visitavam como o general Kaúzla de Arriaga ou ainda alguns ministros do governo de então como, Adriano Moreira, Sá Viana Rebelo ou o chefe da diplomacia Silva Cunha.
O general António Spínola era também visita pontual da nossa unidade, assim como as senhoras representantes do Movimento Nacional Feminino, que por altura do Natal visitavam os militares.
Como no bar de oficiais o grau de exigência na prestação do serviço era maior, senti necessidade em actualizar ainda mais os meus conhecimentos, para tal socorri-me da presença de um camarada, o 1º cabo operador crepito Diogo cuja experiência adquirida no exercício da sua profissão como empregado de mesa num hotel do Algarve ajudou-me, ensinando-me a usar alguns truques na arte de servir com etiqueta as bebidas ou na confecção e apresentação de algumas entradas e aperitivos.
As refeições quer dos oficiais quer dos sargentos eram servidas por elementos africanos da companhia seleccionados pelo comandante para esse fim.
Neste meu desempenho no bar, foram diversos os episódios resultantes do contacto mais próximo com algumas daquelas individualidades.
Certo dia, com a sala repleta de oficiais e de outros ilustres visitantes, o almoço decorria de um modo bastante informal e descontraído, a dado momento o meu comandante chamou-me à sala para que servisse mais vinho ao general Spínola.
Aproximo-me deste com uma garrafa de Casal Garcia, envolta numa toalha para o servir com a etiqueta que o momento exigia. 
 

Rapidamente, o general olhando-me de baixo para cima, através do seu monóculo e no seu habitual estilo frontal e directo, pergunta-me:
 Olha lá rapaz tu é que és o Branco?
Respondi-lhe afirmativamente colocando-me na posição militar mais adequada, esperando a sua reacção.
 Vês-se logo os outros são pretos”, foi este o seu comentário.
Noutra ocasião, em mais uma das suas visitas à unidade e numa altura em que o estou a servir perguntou-me se já tinha almoçado, respondi que o estava a fazer como habitualmente na copa, um espaço contíguo aquela sala. De imediato disse-me que fosse buscar o prato e me sentasse na sua mesa no outro topo de frente para ele.
Assim fiz, retomando a minha refeição não me sentido muito à vontade num meio ambiente a que não estava muito habituado. De seguida mais uma surpresa vinda do general quando viu que eu estava a beber vinho tinto fornecido pela companhia, levantou-se e ofereceu-me a garrafa de vinho verde com que se estava a servir.
Durante a minha comissão, surgiram diversas oportunidades para conversar individualmente com o general pois foram várias as visitas que efectuou ao quartel.
 Os diálogos que com ele mantive durante a minha permanência na Guiné, desenrolaram-se sempre com enorme cordialidade, procurando deixar-me o mais à vontade possível, afirmando frequentemente que não era o general a falar com o 1º cabo, mas sim um homem a falar com outro homem.
Era um militar que, como não podia deixar de ser no desempenho das suas funções de comandante-chefe das forças armada e governador da Guiné, muito exigente em termos disciplinares e bastante rigoroso para com os oficiais e sargentos.
 
permitia que alguém destas classes militares, tentasse de algum modo ocultar ou dissimular o seu posto, não usando ou escondendo as divisas e os galões mas, nos contactos com as praças, evidenciava uma grande abertura e algum sentido de humor, demonstrando sempre nas conversas que com ele mantinha-mos uma preocupação permanente com a nossa vida particular e com a situação dos nossos familiares.
Usava muito frequentemente a expressão: “conheço-vos a todos, já fui soldado como vós”, quando pretendia dar a entender colocar-se na nossa situação compreendendo os nossos problemas.
No relacionamento com os africanos, civis ou militares, era acusado de uma excessiva protecção resultante de uma política de acção psicossocial por ele implantada.
Spínola apresentava-se quase sempre de camuflado e de monóculo, acompanhando algumas operações de perto, fiel ao princípio de que um comandante deve estar sempre perto dos seus homens, cultivando assim uma imagem e um mito.
Em Bissau no palácio de governador tem montada uma óptima máquina de propaganda e a imprensa estrangeira dá-lhe grande destaque dedicando-lhe algumas manchetes.
Ainda antes do final do ano de 1972, surgiu uma oportunidade de passar uns dias de férias na metrópole para desanuviar um pouco do ambiente.
Depois de antecipadamente efectuar a reserva na agência de viagens Correia (Sérgio M. Fialho) de Bissau e de proceder ao respectivo pagamento no valor de 6235$50, embarquei num Boeing 707 com destino a Lisboa e com escala prevista na Ilha do Sal, em Cabo Verde.





Passei cerca de trinta dias em convívio com os meus familiares e amigos, desfrutando ao máximo do ambiente da cidade de Lisboa e arredores de que já tinha saudades, descarregando o stress acumulado.
Terminado este período, regressei ao Bachile ainda antes do Natal, trocando mais uma vez o frio pelo calor.
Não foi possível prolongar a estadia até à quadra festiva porque penso não estar autorizado o gozo de férias nesta época do ano.
O Natal aproximava-se e como já referi, era habitual nesta época a visita de grupos de senhoras do MNF, (Movimento Nacional Feminino), lideradas pela Cilinha (nome de guerra de Cecília Supico Pinto) fundadora do movimento criado em 1961 e em conformidade com os seus estatutos era um movimento independente sem caris político, que mantinha um bem organizado serviço de apoio e distribuição de lembranças aos militares em serviço nas três frentes, (cigarros Avis e Português Suave, isqueiros a gasolina e discos de vinil em cuja capa estava inscrito ”Natal 1972- Operação Presença” com dedicatórias no verso de diversas personalidades do mundo artístico e do desporto.








Foi também por iniciativa das dirigentes deste movimento que se negociou com as entidades envolvidas, a isenção de franquia postal para militares e suas famílias no envio de correspondência através dos populares aerogramas.
Foi igualmente este movimento que prestou algum apoio às famílias dos militares mais carenciadas.
Eram também nesta época festiva apresentadas as celebérrimas gravações de mensagens difundidas através da E N – (Emissora Nacional) e da RTP- (Rádio Televisão Portuguesa).
Também nos era proporcionado assistir a espectáculos musicais com a presença de alguns artistas de primeiro plano, no entanto só possíveis em locais que garantissem condições mínimas de segurança para os intervenientes.

O Natal e a entrada do novo ano eram igualmente motivo obrigatório para a organização de uma festa revestida de enorme significado e vivida muito particularmente por todos.
Ao mesmo tempo era preparada com muito rigor e atentamente controlada ao mais simples pormenor, não fosse mais alguém nos querer fazer uma surpresa entrando na festa sem ser convidado.
Além do correio e particularmente nesta época, os nossos familiares e amigos também nos obsequiavam com alguns mimos para que a quadra fosse passada o melhor possível.
 Para isso faziam-nos chegar encomendas onde incluíam bens tão próximos da nossa memória mas tão pouco disponíveis.
Uma garrafa de vinho, um naco de presunto, um queijo da serra, uma embalagem de broas ou até umas postas de bacalhau eram sempre recebidas com imenso entusiasmo e partilhado entre todos.
Por vezes, as encomendas expedidas através dos SPM, eram alvo da curiosidade de estranhos, não chegando ao seu destino intactas, por isso e para evitar situações do género, sempre que possível recorria-se a algum camarada em trânsito tornando-o portador das encomendas, garantindo desta forma que as mesmas chegavam ao destinatário.
O final do ano aproxima-se e com ele o aumento das acções de guerrilha por parte dos grupos IN cada vez mais organizados e com maior apoio por parte da União Soviética.
As baixas infligidas à nossa aviação, começam a ter algum significado o que implica que temporariamente diminua ou cesse quase por completo o apoio disponibilizado às forças no terreno.
Com efeito, o PAIGC, revelando notável capacidade de manobra e tirando partido do extraordinário acréscimo do potencial de combate, alterou profundamente o seu conceito de

 manobra, passando da actuação dispersa, em superfície, para a concentração maciça sobre objectivos definidos.
Na mensagem de Ano Novo dirigida ao seu povo, Amílcar Cabral anunciava que no decorrer do novo ano e logo que fosse oportuno, convocaria na Guiné uma Assembleia Nacional Popular para que fosse cumprida a sua primeira missão histórica, com a proclamação de um estado, a criação de um executivo e a promulgação da constituição.
Os políticos e os generais portugueses tinham perfeita consciência que Amilcar Cabral trazia consigo uma teoria de libertação a qual lhe conferia notável clareza do propósito.
Os últimos dias do ano foram férteis em acções desencadeadas pelas NT, às quais era exigido um maior poder de concentração e de organização face à atitude do IN.
Na mata da Caboiana, os contactos entre NT e os guerrilheiros eram bastante frequentes assim como as arriscadas viagens dos Alouette III, (helicóptero da Força Aérea Portuguesa) num vai vem na evacuação dos feridos graves ou no reabastecimento de armamento aos nossos homens.
Numa destas últimas acções do ano na zona do Bachile, um destes aparelhos acabou por ser atingido no cone traseiro da fuselagem provocando uma situação difícil de resolver.
Chegava-mos assim ao final de um ano complicado, com cada vez mais evidentes sinais de que os próximos tempos seriam férteis em problemas.




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