Naquele
momento, estava preparado para tudo, porque naturalmente ainda reinava alguma
confusão na minha cabeça, motivada por uma tão brusca mudança e porque não se
perspectivar outras alternativas, respondi afirmativamente à sugestão
apresentada pelo sargento Guerreiro que de pronto, usando a sua influência na
companhia, propôs ao comandante a
aprovação para o
desemprenho das minhas funções, que este aceitou sem reservas, o que veio a
verificar-se ter sido extremamente importante e muito benéfico para o resto da
minha comissão, considerando algumas vantagens que usufruí no desempenho das
minhas funções e do óptimo relacionamento pessoal com o 2º sargento Guerreiro.
Segue-se
a apresentação aos restantes camaradas e superiores hierárquicos, tomando
simultaneamente conhecimento mais pormenorizado do funcionamento da estrutura
militar.
Foi-me
ainda oferecida a possibilidade de poder dispor de alguma privacidade, se
opta-se por ficar instalado na arrecadação de material e fardamento,
utilizando-a como quarto particular, ideia que prontamente rejeitei, porque
para além daquele espaço servir para armazenar equipamento vário e fardamento
servia igualmente para armazenar várias granadas e outro tipo de munições transformando
aquele espaço num autêntico paiol ou barril de pólvora.
Montada
a cama de tubos de ferro tipo beliche com a colaboração do camarada Miranda, 1º
cabo operador de crepito, natural de Queluz e com o qual ainda hoje mantenho
algum contacto, na caserna partilhada por mais dez camaradas, houve que
preparar a aplicação da indispensável rede mosquiteira, condição essencial para
garantir uma noite mais ou menos
tranquila, porque
estas paragens são o habitat ideal e natural de milhões de mosquitos espalhados
por todo o lado em busca de alimento, em que o seu prato favorito é o sangue
humano.
Os
ataques de enormes exames de bageras (abelhas) são também muito
frequentes e perigosos nesta zona do território e bastante temidos até pelos
africanos.
Depois
fui arrumar alguns objectos pessoais num caixote de madeira disposto na
vertical ao lado da minha cama e que funcionava como armário e mesa-de-cabeceira,
forrado com pósteres de vedetas de cinema daquele tempo como, Marilyn Monroe ou
Brigitte Bardot.
Neste primeiro dia de Bachile, livrei-me da
tradicional praxe normalmente reservada aos periquitos, que só não aconteceu
por não ter sido prevista nem previamente anunciada a minha chegada efectiva e
também por não estar presente quem eu ia substituir.
A
companhia designada por CCAÇ16, não estava integrada em nenhum batalhão,
tratava-se de uma companhia indígena de quadros metropolitanos, de rendição
individual e de militares do recrutamento local, composta por cerca de 180
homens, na sua maioria operacionais de diferentes etnias onde se incluíam os
Manjacos, os Fulas e os Futa Fulas, (etnia guineense que apresenta a
particularidade de terem a face marcada por uma dupla incisão vertical)
e ainda os Balantas e os Papéis.
Da
totalidade dos militares só cerca de 30 eram portugueses incluindo oficiais,
sargentos e praças que garantiam não só toda a logística da companhia, como a
preparação e organização operacional da mesma.
O
facto de se tratar de um conjunto de militares de rendição individual, cujo
inicio e fim da comissão não eram coincidentes, criava um espírito de
camaradagem algo diferente daquele que era vivido entre os que chegavam
inseridos em companhias ou batalhões formados em Portugal, acrescido o facto de
sermos em número mais reduzido, proporcionava uma maior e mais forte
aproximação, camaradagem e solidariedade entre todos.
Como
atrás referi, o quartel estava situado em pleno mato, numa posição algo
estratégica para as NT (nossas tropas) e avançada em relação a outras
nossas posições na zona.
Situava-se
a uma distância de sensivelmente 5km em linha recta de um dos principais
centros operacionais do IN (inimigo, turra, guerrilheiros ou população sobre
seu controle, expressão meramente de referência, sem o significado
profundo contido nas palavras) a misteriosa mata da Caboiana, (mata
onde se sabia existir um quartel general das forças IN) estando a
nossa posição situada num ponto relativamente alto onde as casernas e outros
edifícios pintados de branco se tornavam num alvo privilegiado em noites de
luar, para os ataques junto ao arame dos Turras (outra designação de
terrorista, guerrilheiro, combatente do PAIGC).
Os
guerrilheiros chamavam-nos Tugas, pensando tratar-se de um nome
altamente depreciativo mas que somente queria dizer branco.
O
espaço envolvente ao aquartelamento era cercado por uma área dupla de arame
farpado contínua onde estavam colocados diversos holofotes e interrompido
apenas por dois pilares assinalando a entrada do quartel.
Entre
arames e num espaço muito bem capinado, eram montados para defesa do pessoal e
do quartel, fornilhos (armadilha com cordão detonante), com algumas
garrafas vazias de cerveja atadas aos pares pelo gargalo, que ao mais pequeno
estremeção emitiam um som avisando a aproximação do IN, assim como vários
postos de observação e defesa em todo o seu perímetro equipados com armas
ligeiras, tipo metralhadoras HK e Breda, morteiros 60mm e 81mm e os obuses
10,5mm e 14mm.
À entrada do lado
esquerdo junto a uma árvore centenária de grande porte e de grande simbolismo
para os africanos, daquele chão, situava-se o posto de enfermagem onde o
camarada Pinto, “o pastilhas” (cabo enfermeiro), desempenhava as
suas funções seguindo-se o espaço destinado à sala do soldado e logo ao lado o
refeitório.
Depois
uma área destinada à oficina de manutenção das viaturas da companhia e ao motor
gerador que fornecia a luz ao quartel, tarefa a cargo do camarada Pereira, o 1º
cabo ferrugem (mecânico auto) natural de Amares, Braga.
Ligeiramente mais afastado e na retaguarda
deste, existia um paiol que armazenava a maioria das embalagens das diversas
munições e explosivos.
Mais
adiante um forno em pedra onde para além de cozer o pão que alimentava toda a
companhia, era também utilizado para cozinhar-mos alguns dos nossos melhores
petiscos.
Depois
e de frente para a entrada da unidade, situava-se o depósito de géneros, da
responsabilidade do vago mestre, furriel Guimarães, natural de Lisboa, que
geria a distribuição dos géneros alimentares da companhia e cuja importância
para a realização dos nossos petiscos era fundamental como fornecedor dos
diversos ingredientes necessários à concretização dos mesmos.
Logo ao lado a cozinha que estava a cargo do
1º cabo Joaquim, natural do Redondo, Alentejo, onde se confeccionava a fogão de
lenha as refeições diárias e os excelentes petiscos saboreados por todo o
pessoal metropolitano, incluindo oficiais, sargentos e praças.
Prosseguindo
a descrição do aquartelamento e agora já noutro sentido e de frente para o
refeitório, situava-se um edifício onde estava inserido um gabinete que servia
para a realização de algumas reuniões de âmbito mais privado ou mesmo de sala
de audiências na resolução de situações disciplinares graves e que serviu ainda
para a montagem improvisada de um laboratório fotográfico.
Ainda
neste edifício funcionava o bar e o refeitório dos oficiais e logo ao lado a
arrecadação de armamento e fardamento, a minha “oficina”.
Nas
traseiras deste espaço ficava o bar e o refeitório dos sargentos., o meu “part
time”, depois o edifício onde se situava o gabinete do comandante de
companhia, a secretaria e a caserna dos oficiais, ficando do lado oposto a sala
de transmissões.
Nas
proximidades deste edifício e de frente para a parada, estava colocado o mastro
onde era hasteada a Bandeira Nacional, juntamente com uma lápide contendo a
seguinte inscrição.
(Por uma Pátria una e indivisível, a companhia
Manjaca, fica defendendo o chão da cobiça de estranhos, ainda que tenha de
derramar o seu sangue).
Por
detrás do edifício do comando, situavam-se as casernas das praças e dos
sargentos e depois o depósito de água que estava instalado entre estas e as
casernas dos operacionais africanos, seguindo-se os balneários do pessoal.
Num
grande espaço aberto de terra vermelha batida, envolvida por estes edifícios
funcionava a parada do quartel.
outros
espaços e nas proximidades das casernas existiam abrigos ou valas que
funcionavam como protecção quando dos embrulhanços (contacto pelo fogo com o
inimigo, ataque, emboscada), na retaguarda dos edifícios uma parcela de
terreno já com alguma dimensão, era utilizado para nos dedicar-mos à
agricultura, espaço gerido pelos sargentos da companhia e onde se criou uma
horta da qual se extraia uma enorme variedade de legumes e frutos para consumo
do pessoal.
De
assinalar também um espaço de lazer destinado à prática de várias modalidades
desportivas.
De
referir ainda a existência de um heliporto que funcionava como apoio às
operações de maior envergadura desencadeadas a partir da nossa unidade.
As
tabancas colocadas no exterior junto ao quartel estavam prontas a serem
habitadas pelos militares africanos e suas famílias, mas continuavam vazias,
apesar da insistência do então governador da Guiné, general António de Spínola
(o homem do monóculo) continuavam a recusar fazê-lo argumentando que o
corpo deles e dos seus familiares nunca serviriam de escudo às balas e granadas
vindas do outro lado.
Spínola,
tinha na altura na zona de Teixeira Pinto, a elite de oficiais, numa aposta em
conseguir transformar o chão manjaco, num caso de sucesso na adesão das
populações à sua política.
Foi
assim neste cenário que iniciei o cumprimento da minha missão agora um pouco já
mais esclarecido sobre qual o verdadeiro papel a desempenhar naquela muito
pobre mas bela terra africana, porque por cá o que nos era transmitido por
alguns dos nossos superiores tinha apenas e só como objectivo incutir-nos o
espirito da defesa do nosso território invadido pelos
, quando consoante a
análise e perspectiva de cada um a realidade poderia ser outra.
Nos
primeiros dias senti toda uma necessidade de me ambientar a um novo e complexo
conjunto de situações, às pessoas, aos locais, ao clima e a tudo o que de novo
me rodeava, pois eram bem evidentes as diferenças sentidas, se considerar que
praticamente nunca tinha saído do meu habitat e juntando o facto de em menos de
vinte e quatro horas, ver-me envolvido num ambiente de guerra, sem qualquer
preparação especifica para tal e logo colocado numa das zonas de maior impacto
operacional.
A
companhia foi inicialmente comandada pelo capitão José Fernandes Martins, que
após terminada a sua comissão, também foi substituído pelo capitão de
Infantaria, Abilio Dias Afonso, dois oficiais que hoje, reconheço terem tido
extrema importância na complexa gestão da unidade.
Mis
tarde e já na parte final da minha comissão, foi comandante da companhia o
capitão miliciano Luis Queirós Fonseca.
Os
oficiais comandantes de companhia eram os executantes directos de toda a
actividade, usando de grande capacidade de decisão e imaginação para solucionar
os mais diversos problemas administrativos, logísticos e humanos com que se
deparavam frequentemente.
Estes
homens foram, quer no aspecto militar, mas particularmente no humano três
referências extremamente importantes para a maioria dos militares que passaram
pela companhia, em particular para os portugueses, tanto pela amizade e
camaradagem como pelo apoio moral, na ajuda da resolução dos mais difíceis e
variados problemas com que cada um dos militares se debatia.
Logo
nas primeiras horas de permanência no Bachile, apercebo-me da existência no
quartel, de um garoto africano aparentando cerca de três ou quatro anos, achei
estranho e de imediato tentei informar-me para a justificação da presença
naquele cenário de uma criança de tão tenra idade.
Fiquei
esclarecido ao ser informado que o motivo da sua presença, era o resultado de
um resgate efectuado pelas NT, durante uma operação militar na zona da mata da
Caboiana, e que de entre muitas outras consequências, ter resultado na morte do
pai e na fuga da mãe para o interior da mata.
Perante
a situação, os nossos militares trouxeram o garoto que ficou a viver na unidade
protegido pelas NT e segundo o que na altura me foi dado a conhecer, ao abrigo
das leis militares vigentes, foi-lhe atribuído o estatuto de prisioneiro de
guerra.
Foi necessário dar uma
identidade à criança e de acordo com os militares envolvidos na altura nesta
acção, anuíram que seria baptizado com o nome de Augusto Martins Caboiana.
A
razão da escolha deste nome atribuído ao jovem, teve a ver com o facto de o
soldado que o resgatou se chamar Augusto, o comandante de companhia nesse
período era o capitão Martins e o local onde se deu este acontecimento ser
conhecido por mata da Caboiana.
Facilmente
apercebo-me que a assistência necessária dispensada aquele garoto para o seu natural
desenvolvimento era prestada voluntariamente por alguns dos militares que iam
transitando pela companhia e que dispunham de maior disponibilidade e
tratando-se de militares em situação de rendição individual, essa tarefa foi
sendo distribuída por diversos elementos.
ante
a situação e sendo previsível vir a dispor de bastante tempo livre de imediato
me disponibilizei para integrar esse grupo, colaborando no que fosse
necessário.
Acompanha-lo nas
refeições, no banho ou vesti-lo entre outras, eram algumas das tarefas
executadas por cada um.
Era
igualmente necessário disponibilizar algum tempo dedicado às brincadeiras
próprias da sua idade, ensina-lo a conhecer as primeiras letras e números ou
responder a algumas das suas interrogações, eram tarefas muito importantes
porque, para além de ser natural na sua idade, o seu desenvolvimento já era
notável fruto do meio ambiente onde estava inserido e de naquela cabeça,
começar já a existir algumas dúvidas e confusões, causadas pela convivência
próxima com muita gente, permitindo que alguns menos bem-intencionados o
tentassem influenciar negativamente contra nós os “Tugas” portugueses.
Porque
na altura eu ainda não tinha passado pela experiência de ser pai, esta foi sem
dúvida uma oportunidade bastante rica e gratificante, contribuindo até de uma
forma positiva, para ultrapassar melhor as dificuldades de alguns dos dias ali
vividos.
O
estatuto de prisioneiro de guerra atribuído ao jovem, não permitia que se
ausentasse da zona próxima do Bachile, sem a superior autorização de Bissau.
Foram
várias as tentativas que militares vindo de férias à metrópole, no sentido de
conseguirem autorização para trazerem o Augusto, mas o resultado das diversas
petições foi sempre negativo.
Apesar
de colocados num palco situado bem no interior do mato cujo principal cenário
era a guerra, com a qual nos íamos habituando a lidar, não obstava que houvesse
regras definidas a cumprir quer na organização quer no desempenho das funções
destinadas a cada um.
A
situação e as condições obrigavam a que fosse necessário cada militar estar
disponível vinte e quatro horas por dia, havendo no entanto um horário
compreendido entre as 9 e as 17 horas, destinado a tratar da logística e do
expediente administrativo da companhia, onde o respeito pela hierarquia militar
se fazia sentir, não de uma forma demasiado rígida e militarista porque do
total de efectivos incluídos na companhia, só o primeiro e o segundo sargentos
eram militares de carreira.
Os
comandantes que passaram pela unidade durante a minha permanência no Bachile,
bem como os restantes oficiais e sargentos, eram militares milicianos ou do
quadro, que após o horário de expediente, muitas vezes se despiam por completo
do seu papel de militares, passando o relacionamento entre todos a pautar-se
por um princípio de completa igualdade.
Esta forma de relacionamento, revelou-se ser de
extraordinária importãncia na consolidação da união entre todos.
O
capitão Fonseca que substituiu o capitão Abilio Afonso no comando, era natural
da zona de Coimbra e se a memória não me falha tinha formação académica na área
de direito, tendo sido repescado para cumprir uma comissão já depois de
terminado o seu normal tempo de serviço militar.
O
sargento Guerreiro natural da cidade de Tomar, tinha já no seu curriculum
militar várias comissões de serviço em diferentes locais e apesar de
inicialmente ter feito parte das tropas pára-quedistas, estava por razões de
ordem disciplinar colocado no exército como 2º sargento.
Normalmente
acordava bastante cedo, depois o meu dia no Bachile começava com um bom e
reforçado pequeno-almoço que variava entre um simples café com leite, após o
complexo mas divertido exercício de retirar todas as moscas e abelhas que
envolviam a cafeteira de cinco litros, pão com manteiga, marmelada ou queijo,
ou ainda duas mangas, papaias ou outros frutos bem frescos que previamente
tinham sido colocadas na arca frigorífica no dia anterior.
Em
alternativa um saboroso pão com chouriço acabado de sair do forno para
acompanhar o conteúdo de uma lata de ração de combate contendo (dobrada,
jardineira bife de vaca ou atum) sempre acompanhado da respectiva
bazuca bem fresca como convinha.
Depois
sim estava na hora de ir ao trabalho, abria a minha oficina e preparava-me para
responder às mais diversas solicitações, que passavam pela distribuição do
fardamento, do equipamento bélico ou outro, registando em cadernos de carga com
os nomes e números dos militares, as saídas e entradas de material, de forma a
controlar os consumos.
De
seguida repor sempre que necessário as munições em falta nos diversos postos de
defesa e vigia, e ainda reparar as avarias do diversificado armamento.
A
observação e reparação das armas supostamente avariadas originaram por vezes
situações que tanto tinham de caricatas como de perigosas, quando por exemplo
um militar africano dirigiu-se a mim com a arma em posição altamente incorrecta
e com munição encravada no interior da câmara ou ainda quando me traziam na mão
uma granada de dilagrama já com a cavilha de segurança retirada.
branco, sou o isaias o enfermeiro que te recebeu no bachile. Fico triste porque ninguem deu por mim entre 71/73. Sou do tempo do capitão martins e do capitão afonso. Estive em 23/6/2011 em Almeirim julgando encontrar toda a gente. Não te encontrei apenas te encontro nos comentários no Blog dos amigos entre eles tu.
ResponderEliminar