sexta-feira, 4 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE 1972-1974 III




Naquele momento, estava preparado para tudo, porque naturalmente ainda reinava alguma confusão na minha cabeça, motivada por uma tão brusca mudança e porque não se perspectivar outras alternativas, respondi afirmativamente à sugestão apresentada pelo sargento Guerreiro que de pronto, usando a sua influência na companhia, propôs ao comandante a

aprovação para o desemprenho das minhas funções, que este aceitou sem reservas, o que veio a verificar-se ter sido extremamente importante e muito benéfico para o resto da minha comissão, considerando algumas vantagens que usufruí no desempenho das minhas funções e do óptimo relacionamento pessoal com o 2º sargento Guerreiro.

Segue-se a apresentação aos restantes camaradas e superiores hierárquicos, tomando simultaneamente conhecimento mais pormenorizado do funcionamento da estrutura militar.

Foi-me ainda oferecida a possibilidade de poder dispor de alguma privacidade, se opta-se por ficar instalado na arrecadação de material e fardamento, utilizando-a como quarto particular, ideia que prontamente rejeitei, porque para além daquele espaço servir para armazenar equipamento vário e fardamento servia igualmente para armazenar várias granadas e outro tipo de munições transformando aquele espaço num autêntico paiol ou barril de pólvora.

Montada a cama de tubos de ferro tipo beliche com a colaboração do camarada Miranda, 1º cabo operador de crepito, natural de Queluz e com o qual ainda hoje mantenho algum contacto, na caserna partilhada por mais dez camaradas, houve que preparar a aplicação da indispensável rede mosquiteira, condição essencial para garantir uma noite mais ou menos

tranquila, porque estas paragens são o habitat ideal e natural de milhões de mosquitos espalhados por todo o lado em busca de alimento, em que o seu prato favorito é o sangue humano.

Os ataques de enormes exames de bageras (abelhas) são também muito frequentes e perigosos nesta zona do território e bastante temidos até pelos africanos.

Depois fui arrumar alguns objectos pessoais num caixote de madeira disposto na vertical ao lado da minha cama e que funcionava como armário e mesa-de-cabeceira, forrado com pósteres de vedetas de cinema daquele tempo como, Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot.

 Neste primeiro dia de Bachile, livrei-me da tradicional praxe normalmente reservada aos periquitos, que só não aconteceu por não ter sido prevista nem previamente anunciada a minha chegada efectiva e também por não estar presente quem eu ia substituir.

A companhia designada por CCAÇ16, não estava integrada em nenhum batalhão, tratava-se de uma companhia indígena de quadros metropolitanos, de rendição individual e de militares do recrutamento local, composta por cerca de 180 homens, na sua maioria operacionais de diferentes etnias onde se incluíam os Manjacos, os Fulas e os Futa Fulas, (etnia guineense que apresenta a particularidade de terem a face marcada por uma dupla incisão vertical) e ainda os Balantas e os Papéis.

Da totalidade dos militares só cerca de 30 eram portugueses incluindo oficiais, sargentos e praças que garantiam não só toda a logística da companhia, como a preparação e organização operacional da mesma.


O facto de se tratar de um conjunto de militares de rendição individual, cujo inicio e fim da comissão não eram coincidentes, criava um espírito de camaradagem algo diferente daquele que era vivido entre os que chegavam inseridos em companhias ou batalhões formados em Portugal, acrescido o facto de sermos em número mais reduzido, proporcionava uma maior e mais forte aproximação, camaradagem e solidariedade entre todos.

Como atrás referi, o quartel estava situado em pleno mato, numa posição algo estratégica para as NT (nossas tropas) e avançada em relação a outras nossas posições na zona.

Situava-se a uma distância de sensivelmente 5km em linha recta de um dos principais centros operacionais do IN (inimigo, turra, guerrilheiros ou população sobre seu controle, expressão meramente de referência, sem o significado profundo contido nas palavras) a misteriosa mata da Caboiana, (mata onde se sabia existir um quartel general das forças IN) estando a nossa posição situada num ponto relativamente alto onde as casernas e outros edifícios pintados de branco se tornavam num alvo privilegiado em noites de luar, para os ataques junto ao arame dos Turras (outra designação de terrorista, guerrilheiro, combatente do PAIGC).






Os guerrilheiros chamavam-nos Tugas, pensando tratar-se de um nome altamente depreciativo mas que somente queria dizer branco.

O espaço envolvente ao aquartelamento era cercado por uma área dupla de arame farpado contínua onde estavam colocados diversos holofotes e interrompido apenas por dois pilares assinalando a entrada do quartel.

Entre arames e num espaço muito bem capinado, eram montados para defesa do pessoal e do quartel, fornilhos (armadilha com cordão detonante), com algumas garrafas vazias de cerveja atadas aos pares pelo gargalo, que ao mais pequeno estremeção emitiam um som avisando a aproximação do IN, assim como vários postos de observação e defesa em todo o seu perímetro equipados com armas ligeiras, tipo metralhadoras HK e Breda, morteiros 60mm e 81mm e os obuses 10,5mm e 14mm.






À entrada do lado esquerdo junto a uma árvore centenária de grande porte e de grande simbolismo para os africanos, daquele chão, situava-se o posto de enfermagem onde o camarada Pinto, “o pastilhas” (cabo enfermeiro), desempenhava as suas funções seguindo-se o espaço destinado à sala do soldado e logo ao lado o refeitório.

Depois uma área destinada à oficina de manutenção das viaturas da companhia e ao motor gerador que fornecia a luz ao quartel, tarefa a cargo do camarada Pereira, o 1º cabo ferrugem (mecânico auto) natural de Amares, Braga.

 Ligeiramente mais afastado e na retaguarda deste, existia um paiol que armazenava a maioria das embalagens das diversas munições e explosivos.

Mais adiante um forno em pedra onde para além de cozer o pão que alimentava toda a companhia, era também utilizado para cozinhar-mos alguns dos nossos melhores petiscos.

Depois e de frente para a entrada da unidade, situava-se o depósito de géneros, da responsabilidade do vago mestre, furriel Guimarães, natural de Lisboa, que geria a distribuição dos géneros alimentares da companhia e cuja importância para a realização dos nossos petiscos era fundamental como fornecedor dos diversos ingredientes necessários à concretização dos mesmos.

 Logo ao lado a cozinha que estava a cargo do 1º cabo Joaquim, natural do Redondo, Alentejo, onde se confeccionava a fogão de lenha as refeições diárias e os excelentes petiscos saboreados por todo o pessoal metropolitano, incluindo oficiais, sargentos e praças.




Prosseguindo a descrição do aquartelamento e agora já noutro sentido e de frente para o refeitório, situava-se um edifício onde estava inserido um gabinete que servia para a realização de algumas reuniões de âmbito mais privado ou mesmo de sala de audiências na resolução de situações disciplinares graves e que serviu ainda para a montagem improvisada de um laboratório fotográfico.

Ainda neste edifício funcionava o bar e o refeitório dos oficiais e logo ao lado a arrecadação de armamento e fardamento, a minha “oficina”.

Nas traseiras deste espaço ficava o bar e o refeitório dos sargentos., o meu “part time”, depois o edifício onde se situava o gabinete do comandante de companhia, a secretaria e a caserna dos oficiais, ficando do lado oposto a sala de transmissões.

Nas proximidades deste edifício e de frente para a parada, estava colocado o mastro onde era hasteada a Bandeira Nacional, juntamente com uma lápide contendo a seguinte inscrição.


 (Por uma Pátria una e indivisível, a companhia Manjaca, fica defendendo o chão da cobiça de estranhos, ainda que tenha de derramar o seu sangue).

Por detrás do edifício do comando, situavam-se as casernas das praças e dos sargentos e depois o depósito de água que estava instalado entre estas e as casernas dos operacionais africanos, seguindo-se os balneários do pessoal.

Num grande espaço aberto de terra vermelha batida, envolvida por estes edifícios funcionava a parada do quartel.


outros espaços e nas proximidades das casernas existiam abrigos ou valas que funcionavam como protecção quando dos embrulhanços (contacto pelo fogo com o inimigo, ataque, emboscada), na retaguarda dos edifícios uma parcela de terreno já com alguma dimensão, era utilizado para nos dedicar-mos à agricultura, espaço gerido pelos sargentos da companhia e onde se criou uma horta da qual se extraia uma enorme variedade de legumes e frutos para consumo do pessoal.

De assinalar também um espaço de lazer destinado à prática de várias modalidades desportivas.

De referir ainda a existência de um heliporto que funcionava como apoio às operações de maior envergadura desencadeadas a partir da nossa unidade.

As tabancas colocadas no exterior junto ao quartel estavam prontas a serem habitadas pelos militares africanos e suas famílias, mas continuavam vazias, apesar da insistência do então governador da Guiné, general António de Spínola (o homem do monóculo) continuavam a recusar fazê-lo argumentando que o corpo deles e dos seus familiares nunca serviriam de escudo às balas e granadas vindas do outro lado.

Spínola, tinha na altura na zona de Teixeira Pinto, a elite de oficiais, numa aposta em conseguir transformar o chão manjaco, num caso de sucesso na adesão das populações à sua política.

Foi assim neste cenário que iniciei o cumprimento da minha missão agora um pouco já mais esclarecido sobre qual o verdadeiro papel a desempenhar naquela muito pobre mas bela terra africana, porque por cá o que nos era transmitido por alguns dos nossos superiores tinha apenas e só como objectivo incutir-nos o espirito da defesa do nosso território invadido pelos   
, quando consoante a análise e perspectiva de cada um a realidade poderia ser outra.
Nos primeiros dias senti toda uma necessidade de me ambientar a um novo e complexo conjunto de situações, às pessoas, aos locais, ao clima e a tudo o que de novo me rodeava, pois eram bem evidentes as diferenças sentidas, se considerar que praticamente nunca tinha saído do meu habitat e juntando o facto de em menos de vinte e quatro horas, ver-me envolvido num ambiente de guerra, sem qualquer preparação especifica para tal e logo colocado numa das zonas de maior impacto operacional.
A companhia foi inicialmente comandada pelo capitão José Fernandes Martins, que após terminada a sua comissão, também foi substituído pelo capitão de Infantaria, Abilio Dias Afonso, dois oficiais que hoje, reconheço terem tido extrema importância na complexa gestão da unidade.
Mis tarde e já na parte final da minha comissão, foi comandante da companhia o capitão miliciano Luis Queirós Fonseca.
Os oficiais comandantes de companhia eram os executantes directos de toda a actividade, usando de grande capacidade de decisão e imaginação para solucionar os mais diversos problemas administrativos, logísticos e humanos com que se deparavam frequentemente.
Estes homens foram, quer no aspecto militar, mas particularmente no humano três referências extremamente importantes para a maioria dos militares que passaram pela companhia, em particular para os portugueses, tanto pela amizade e camaradagem como pelo apoio moral, na ajuda da resolução dos mais difíceis e variados problemas com que cada um dos militares se debatia.
Logo nas primeiras horas de permanência no Bachile, apercebo-me da existência no quartel, de um garoto africano aparentando cerca de três ou quatro anos, achei estranho e de imediato tentei informar-me para a justificação da presença naquele cenário de uma criança de tão tenra idade.
Fiquei esclarecido ao ser informado que o motivo da sua presença, era o resultado de um resgate efectuado pelas NT, durante uma operação militar na zona da mata da Caboiana, e que de entre muitas outras consequências, ter resultado na morte do pai e na fuga da mãe para o interior da mata.
Perante a situação, os nossos militares trouxeram o garoto que ficou a viver na unidade protegido pelas NT e segundo o que na altura me foi dado a conhecer, ao abrigo das leis militares vigentes, foi-lhe atribuído o estatuto de prisioneiro de guerra.
Foi necessário dar uma identidade à criança e de acordo com os militares envolvidos na altura nesta acção, anuíram que seria baptizado com o nome de Augusto Martins Caboiana.






A razão da escolha deste nome atribuído ao jovem, teve a ver com o facto de o soldado que o resgatou se chamar Augusto, o comandante de companhia nesse período era o capitão Martins e o local onde se deu este acontecimento ser conhecido por mata da Caboiana.
Facilmente apercebo-me que a assistência necessária dispensada aquele garoto para o seu natural desenvolvimento era prestada voluntariamente por alguns dos militares que iam transitando pela companhia e que dispunham de maior disponibilidade e tratando-se de militares em situação de rendição individual, essa tarefa foi sendo distribuída por diversos elementos.

ante a situação e sendo previsível vir a dispor de bastante tempo livre de imediato me disponibilizei para integrar esse grupo, colaborando no que fosse necessário.

Acompanha-lo nas refeições, no banho ou vesti-lo entre outras, eram algumas das tarefas executadas por cada um.

Era igualmente necessário disponibilizar algum tempo dedicado às brincadeiras próprias da sua idade, ensina-lo a conhecer as primeiras letras e números ou responder a algumas das suas interrogações, eram tarefas muito importantes porque, para além de ser natural na sua idade, o seu desenvolvimento já era notável fruto do meio ambiente onde estava inserido e de naquela cabeça, começar já a existir algumas dúvidas e confusões, causadas pela convivência próxima com muita gente, permitindo que alguns menos bem-intencionados o tentassem influenciar negativamente contra nós os “Tugas” portugueses.

Porque na altura eu ainda não tinha passado pela experiência de ser pai, esta foi sem dúvida uma oportunidade bastante rica e gratificante, contribuindo até de uma forma positiva, para ultrapassar melhor as dificuldades de alguns dos dias ali vividos.

O estatuto de prisioneiro de guerra atribuído ao jovem, não permitia que se ausentasse da zona próxima do Bachile, sem a superior autorização de Bissau.

Foram várias as tentativas que militares vindo de férias à metrópole, no sentido de conseguirem autorização para trazerem o Augusto, mas o resultado das diversas petições foi sempre negativo.


Apesar de colocados num palco situado bem no interior do mato cujo principal cenário era a guerra, com a qual nos íamos habituando a lidar, não obstava que houvesse regras definidas a cumprir quer na organização quer no desempenho das funções destinadas a cada um.

A situação e as condições obrigavam a que fosse necessário cada militar estar disponível vinte e quatro horas por dia, havendo no entanto um horário compreendido entre as 9 e as 17 horas, destinado a tratar da logística e do expediente administrativo da companhia, onde o respeito pela hierarquia militar se fazia sentir, não de uma forma demasiado rígida e militarista porque do total de efectivos incluídos na companhia, só o primeiro e o segundo sargentos eram militares de carreira.

Os comandantes que passaram pela unidade durante a minha permanência no Bachile, bem como os restantes oficiais e sargentos, eram militares milicianos ou do quadro, que após o horário de expediente, muitas vezes se despiam por completo do seu papel de militares, passando o relacionamento entre todos a pautar-se por um princípio de completa igualdade.

 Esta forma de relacionamento, revelou-se ser de extraordinária importãncia na consolidação da união entre todos.

O capitão Fonseca que substituiu o capitão Abilio Afonso no comando, era natural da zona de Coimbra e se a memória não me falha tinha formação académica na área de direito, tendo sido repescado para cumprir uma comissão já depois de terminado o seu normal tempo de serviço militar.

O sargento Guerreiro natural da cidade de Tomar, tinha já no seu curriculum militar várias comissões de serviço em diferentes locais e apesar de inicialmente ter feito parte das tropas pára-quedistas, estava por razões de ordem disciplinar colocado no exército como 2º sargento.





Normalmente acordava bastante cedo, depois o meu dia no Bachile começava com um bom e reforçado pequeno-almoço que variava entre um simples café com leite, após o complexo mas divertido exercício de retirar todas as moscas e abelhas que envolviam a cafeteira de cinco litros, pão com manteiga, marmelada ou queijo, ou ainda duas mangas, papaias ou outros frutos bem frescos que previamente tinham sido colocadas na arca frigorífica no dia anterior.

Em alternativa um saboroso pão com chouriço acabado de sair do forno para acompanhar o conteúdo de uma lata de ração de combate contendo (dobrada, jardineira bife de vaca ou atum) sempre acompanhado da respectiva bazuca bem fresca como convinha.

Depois sim estava na hora de ir ao trabalho, abria a minha oficina e preparava-me para responder às mais diversas solicitações, que passavam pela distribuição do fardamento, do equipamento bélico ou outro, registando em cadernos de carga com os nomes e números dos militares, as saídas e entradas de material, de forma a controlar os consumos.

De seguida repor sempre que necessário as munições em falta nos diversos postos de defesa e vigia, e ainda reparar as avarias do diversificado armamento.
  
A observação e reparação das armas supostamente avariadas originaram por vezes situações que tanto tinham de caricatas como de perigosas, quando por exemplo um militar africano dirigiu-se a mim com a arma em posição altamente incorrecta e com munição encravada no interior da câmara ou ainda quando me traziam na mão uma granada de dilagrama já com a cavilha de segurança retirada.


















                  



                                                          











1 comentário:

  1. branco, sou o isaias o enfermeiro que te recebeu no bachile. Fico triste porque ninguem deu por mim entre 71/73. Sou do tempo do capitão martins e do capitão afonso. Estive em 23/6/2011 em Almeirim julgando encontrar toda a gente. Não te encontrei apenas te encontro nos comentários no Blog dos amigos entre eles tu.

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