No mato, só era possível beber água depois der
previamente tratada com dois comprimidos e filtrada de forma a eliminar os
micróbios existentes mas que lhe dava um sabor bastante desagradável. Se fosse
guardada água numa garrafa de vidro transparente de um dia para o outro, a má
qualidade da água fazia alterar por completo a cor da garrafa.
Entretanto Spínola é substituído a 6 de Agosto
pelo então General Bettencourt Rodrigues, motivado ao que se crê por uma sua
declaração, após encontros com o Presidente Senghor do Senegal no sentido de se
encontrar uma solução política para o fim do conflito.
Marcelo
Caetano pôs fim a estes contactos, respondendo com a conhecida frase “Prefiro
um desastre militar na Guiné a negociar seja com quem for”.
Estavam
mais uma vez lançadas as sementes da contestação à guerra colonial na Guiné.
As NT iam somando insucessos, alguns dos quais
de grande gravidade, continuava o abandono de alguns locais e as retiradas
dramáticas de outros com gravíssimas consequências.
Nesta altura já se destacava pela sua acção
empenhada Salgueiro Maia, cuja companhia de cavalaria já tinha terminado a sua
comissão aguardando embarque para Lisboa.
Quando
o General Spínola deixa a Guiné, já é bem perceptível algum mau estar entre os
oficiais milicianos e já frequentemente nos chegavam rumores de reuniões do que
viria a ser o movimento dos capitães.
Começa a ser perceptível alguma alteração de
comportamento dos oficiais responsáveis pelas operações militares no
território, a estratégia de guerra estava a mudar, não por medo pois alguns
deles já tinham a experiência de seis e oito anos de conflito, já se tinham
habituado e conheciam-na muito bem, mas sim por respeito
Nas suas unidades militares ou no mato, estes
conviviam com as dificuldades, com as realidades e contradições.
Conviviam igualmente com as camadas mais
politizadas vindas das universidades que reflectiam e interrogavam-se sobre
aquela guerra e o regime que a impunha.
Este sentimento comum começou a fazer-se
sentir nos capitães dos três ramos das forças armadas, logo no início do ano de
1973, quando alguns dos oficiais resolveram sair dos seus gabinetes com ar
condicionado e despertaram para a realidade.
Em 24 de Setembro de 1973 o comandante Nino
Vieira declara uniteralmente a independência da Guiné na região desabitada de
Madina do Boé, e prontamente reconhecida pela maioria dos países da ONU.
Foi um ano extremamente difícil e esta atitude
veio reforçar mais ainda o ânimo dos guerrilheiros que sabiam aproveitar cada
vez mais a nossa frágil e deficiente organização, encetando algumas acções de
notável envergadura até ao final do ano.
Finalmente entramos no ano de 1974 e no
horizonte já se perspectiva o final da minha comissão, começo a utilizar
diversos contactos de forma a saber quando estaria prevista a mobilização do
meu periquito.
Altero um pouco alguns dos meus comportamentos
no sentido de não arriscar como até aqui nas mais diversas situações.
Passei a deslocar-me menos vezes a Bissau e
quando o fazia protegia-me não me expondo demasiado e evitando situações mais
dúbias.
No quartel também alterei algumas das minhas
atitudes quer no desemprenho das minhas funções como militar, quer nos momentos
de maior descontracção.
Cheguei a recusar fazer a limpeza do paiol com
o sargento Guerreiro, porque considerei ser demasiado arriscado separar
granadas de dilagrama, supostamente deterioradas, forçando a separação
colocando-as debaixo do pé, lançando para o mato as que nos ofereciam dúvidas.
Reforço a ideia de neste inicio de ano,
parecer haver uma certa tendência para as NT, encararem a guerra por outro
prisma, fruto daquilo que seria uma pré preparação do que viria a ser o MFA (Movimento
das Forças Armadas)
As acções das tropas IN, continuam a ter
grande expressão nos mais diversos pontos da Guiné e as suas consequências são
bem visíveis no aumento do número de evacuações quer para o hospital militar de
Bissau, quer mesmo para a metrópole nos casos que apresentam maior gravidade.
Em Fevereiro deste ano é publicado o livro “Portugal
e o Futuro”, de autoria do general António Spínola que defendia o fim da
guerra e a liberalização do regime, criando desde modo um sentido mau estar nos
meios políticos.
Na perspectiva do regresso para breve, começo
a organizar as ideias e sempre que não é possível deslocar-me a Bissau, peço a
alguém da companhia para se informar sobre o embarque do meu periquito.
Passei nesta altura por um período bastante
tenso, por um lado porque o desgaste físico e psicológico já era grande, por
outro a ansiedade natural de um regresso que se perspectivava para breve.
Talvez causado por este estado de espírito,
estive na iminência de complicar o fim da minha comissão e o consequente
regresso, com um problema de ordem disciplinar, num conflito em que fui
interveniente com um alferes que tinha chegado recentemente à companhia para
completar um estágio de três meses numa unidade operacional, findo o qual
regressaria à metrópole onde era promovido a capitão e posteriormente
mobilizado para comandar uma unidade.
Numa noite em que no bar de sargentos o
movimento era muito, motivado pela presença de grupos de comandos e
pára-quedistas que preparavam a saída para mais uma acção, o alferes José
Manuel, já por mais de uma vez, tinha solicitado a minha presença junto da
arrecadação para que procedesse à troca de uma peça de roupa da cama.
Depois de o ter feito insistentemente sem
qualquer resposta da minha parte, resolveu deslocar-se ao bar de sargentos e em
termos que eu na altura considerei não serem os mais correctos, ordenou-me que
largasse o que estava a fazer e fosse de imediato satisfazer o seu pedido.
Como não lhe obedeci e ainda respondi
igualmente de uma forma menos correcta, lembrando-lhe que já era muito tarde, que
estava a trabalhar e que ainda tinha muito pela frente, no dia seguinte bem
cedo sou alertado pelo furriel vago-mestre com a notícia de que o referido
oficial estava a elaborar uma participação disciplinar dirigida ao comandante
da companhia e contra a minha pessoa.
Ciente das consequências que daí poderiam
resultar, fui de imediato alertar o 2º sargento Guerreiro para o sucedido, pois
só ele naquele momento podia fazer com que as coisas não tomassem proporções
mais graves, tentando que o alferes desisti-se das suas intenções.
Não o conseguimos demover e a participação
seguiu em frente tendo-me sido levantado um auto, resultante de um processo
disciplinar.
Quase no final da comissão de serviço estava a
ser pela primeira vez alvo da justiça militar e se o facto de não ter
antecedentes podia de algum modo funcionar a meu favor, por a infracção ter
sido cometida sobre um oficial podia ser mais complicado de resolver.
Esta falta disciplinar, ao abrigo do RDM (Regulamento
Disciplina Militar), resultava no mínimo na pena de oito dias de detenção e
ao consequente adiamento do regresso que se podia prolongar em mais alguns
meses.
Fui ouvido pelo oficial nomeado para os
problemas disciplinares, um alferes miliciano operacional da companhia, pessoa
de grande flexibilidade e de apurado sentido de justiça, natural de Chaves e
com quem pontualmente fazia umas patuscadas.
Reunimo-nos na sala destinada para esse
efeito, ouvindo a minha versão dos acontecimentos e confrontando-a com o que
constava na participação.
Considero ter tido muita sorte porque este
oficial com quem eu tinha um óptimo relacionamento pessoal, elaborou o auto de
uma forma muito favorável, tentando minimizar as consequências da eventual
pena.
Durante as mais de três horas em que declarei
a minha versão dos factos, foram feitas interrupções pontuais porque tínhamos
companhia, cerveja,
queijo e presunto que o alferes tinha recebido há poucos dias da sua terra.
Sei que a redacção final do auto foi por este
oficial de alguma forma aligeirada para que a interpretação final atribuída
pelo comandante, não fosse no sentido de a agravar.
Terminado o auto, restava-me aguardar pelo
veredicto final por parte do comandante da companhia, antes porém solicitei
mais uma vez a intervenção do sargento Guerreiro junto deste.
Alguns dias mais tarde sou chamado ao gabinete
do capitão, que depois de demonstrar a sua reprovação pela minha atitude para
com um oficial, alertou-me para a pena a que me sujeitava, sugerindo-me que
poderia amenizar o meu castigo se fizesse um pedido de desculpas públicas ao
alferes em causa.
A minha pronta resposta foi a de que
independentemente do castigo que entendesse atribuir-me, nunca da minha parte
ia haver um pedido de desculpas por achar que apesar de eu não ter sido
totalmente correcto, antes tinha sido o alferes extremamente incorrecto para
comigo pela forma verbal e gestoal como se dirigiu a mim.
Houve ali um longo período de insistência para
que eu alterasse a minha posição mas, face à minha resistência e graças à
intervenção do sargento Guerreiro, actuando no sentido de exaltar as minhas
qualidades como homem e militar, o comandante acabou por ceder nas suas
intenções, concluindo ir ficar sem efeito o castigo, não sem me ter dado uma
enorme reprimenda que naquela fase já não causava grande impacto.
Depois disto e no decorrer de um jogo de
voleibol disputado entre oficiais e praças, ia surgindo outro conflito com a
mesma pessoa após disputa de uma bola junto à rede que foi mal interpretada,
face aos antecedentes ocorridos muito recentemente.
Na
conclusão deste episódio, apetece-me fazer uma pequena referência a um poema de
Manuel Alegre:
(Mesmo na noite mais
triste / Em tempos de servidão, / há sempre alguém que resiste, / Há sempre
alguém que diz não.)
Resta-me acrescentar que já depois de
terminada a comissão, encontrei casualmente o referido oficial agora já com a
patente de capitão do exército português, numa rua de Lisboa, onde depois de um
grande abraço fomos beber uns copos recordando de uma forma salutar e divertida
este episódio que ficou completamente sanado.
Depois de muita pesquisa e persistência,
consigo finalmente saber que estaria previsto para meados do mês de Fevereiro a
partida para a Guiné do militar que me iria substituir.
De cada vez que uma coluna vinda de Bissau
chegava a Teixeira Pinto, procurava via rádio do serviço de transmissões, saber
se na mesma vinha algum periquito e caso afirmativo, quem é que vinha render.
Era necessário confirmar muito bem qualquer
informação, porque por vezes surgiam algumas intencionalmente falsas,
fornecidas apenas com a intenção de se começar antecipadamente a comemorar
pagando umas rodadas de cerveja.
Finalmente e já muito próximo do fim do mês de
Fevereiro, surge a boa notícia de que na coluna vinha um 1º cabo para o Bachile
e para render o cabo Branco.
Fiquei algo impaciente até a nossa viatura
chegar ao quartel e apesar de nesse dia estar-mos por razões de segurança
sem iluminação, mesmo assim com todas as luzes
apagadas, foi-me fácil perceber que na Berliet vinha um novo elemento
distinguindo-se bem pela tonalidade da pele e pela boa conservação da sua
farda, faltando só confirmar se de facto era o destinado a substituir-me.
Logo que saltou da viatura perguntei quem ele vinha
render, respondeu-me que era o cabo Branco, no entanto só depois de verificar
cuidadosamente a respectiva guia de marcha, confirmei que efectivamente assim
era e pode extravasar toda a ansiedade acumulada, procedendo à digna recepção
ao novo elemento e comemorando com todos os camaradas aquele momento tão
desejado.
Depois da habitual praxe com que brindávamos
os periquitos, seguiu-se mais uma improvisada festa que durou toda a noite em
amena confraternização com muita comida e bebida e com a presença de um
significativo número de camaradas.
No dia seguinte foi minha intenção começar
desde logo a passar o serviço para que tão rápido quanto possível o novo
elemento estivesse em condições de desempenhar as suas funções, para que em
breve pudesse fazer as malas e rumar a Bissau aguardando transporte para
Lisboa.
Alguns dias decorridos, já o periquito estava
em condições de assumir o seu papel e informei o meu chefe o 2º sargento
Guerreiro que no meu entender estava tudo pronto para que se procedesse à elaboração
da respectiva guia que dava por concluída a comissão e me autorizava a ir para
Bissau a aguardar disponibilidade de transporte.
Sem comentários:
Enviar um comentário