sábado, 12 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE- 1972-1974 XIII









 No mato, só era possível beber água depois der previamente tratada com dois comprimidos e filtrada de forma a eliminar os micróbios existentes mas que lhe dava um sabor bastante desagradável. Se fosse guardada água numa garrafa de vidro transparente de um dia para o outro, a má qualidade da água fazia alterar por completo a cor da garrafa.

 Entretanto Spínola é substituído a 6 de Agosto pelo então General Bettencourt Rodrigues, motivado ao que se crê por uma sua declaração, após encontros com o Presidente Senghor do Senegal no sentido de se encontrar uma solução política para o fim do conflito.

         Marcelo Caetano pôs fim a estes contactos, respondendo com a conhecida frase “Prefiro um desastre militar na Guiné a negociar seja com quem for”.

         Estavam mais uma vez lançadas as sementes da contestação à guerra colonial na Guiné.

 As NT iam somando insucessos, alguns dos quais de grande gravidade, continuava o abandono de alguns locais e as retiradas dramáticas de outros com gravíssimas consequências.

 Nesta altura já se destacava pela sua acção empenhada Salgueiro Maia, cuja companhia de cavalaria já tinha terminado a sua comissão aguardando embarque para Lisboa.

         Quando o General Spínola deixa a Guiné, já é bem perceptível algum mau estar entre os oficiais milicianos e já frequentemente nos chegavam rumores de reuniões do que viria a ser o movimento dos capitães.

 Começa a ser perceptível alguma alteração de comportamento dos oficiais responsáveis pelas operações militares no território, a estratégia de guerra estava a mudar, não por medo pois alguns deles já tinham a experiência de seis e oito anos de conflito, já se tinham habituado e conheciam-na   muito bem, mas sim por respeito

 Nas suas unidades militares ou no mato, estes conviviam com as dificuldades, com as realidades e contradições.
 Conviviam igualmente com as camadas mais politizadas vindas das universidades que reflectiam e interrogavam-se sobre aquela guerra e o regime que a impunha.
 Este sentimento comum começou a fazer-se sentir nos capitães dos três ramos das forças armadas, logo no início do ano de 1973, quando alguns dos oficiais resolveram sair dos seus gabinetes com ar condicionado e despertaram para a realidade.
 Em 24 de Setembro de 1973 o comandante Nino Vieira declara uniteralmente a independência da Guiné na região desabitada de Madina do Boé, e prontamente reconhecida pela maioria dos países da ONU.
 Foi um ano extremamente difícil e esta atitude veio reforçar mais ainda o ânimo dos guerrilheiros que sabiam aproveitar cada vez mais a nossa frágil e deficiente organização, encetando algumas acções de notável envergadura até ao final do ano.



 Finalmente entramos no ano de 1974 e no horizonte já se perspectiva o final da minha comissão, começo a utilizar diversos contactos de forma a saber quando estaria prevista a mobilização do meu periquito.
 Altero um pouco alguns dos meus comportamentos no sentido de não arriscar como até aqui nas mais diversas situações.
 Passei a deslocar-me menos vezes a Bissau e quando o fazia protegia-me não me expondo demasiado e evitando situações mais dúbias.
 No quartel também alterei algumas das minhas atitudes quer no desemprenho das minhas funções como militar, quer nos momentos de maior descontracção.
 Cheguei a recusar fazer a limpeza do paiol com o sargento Guerreiro, porque considerei ser demasiado arriscado separar granadas de dilagrama, supostamente deterioradas, forçando a separação colocando-as debaixo do pé, lançando para o mato as que nos ofereciam dúvidas.
 Reforço a ideia de neste inicio de ano, parecer haver uma certa tendência para as NT, encararem a guerra por outro prisma, fruto daquilo que seria uma pré preparação do que viria a ser o MFA (Movimento das Forças Armadas)
 As acções das tropas IN, continuam a ter grande expressão nos mais diversos pontos da Guiné e as suas consequências são bem visíveis no aumento do número de evacuações quer para o hospital militar de Bissau, quer mesmo para a metrópole nos casos que apresentam maior gravidade.
 Em Fevereiro deste ano é publicado o livro “Portugal e o Futuro”, de autoria do general António Spínola que defendia o fim da guerra e a liberalização do regime, criando desde modo um sentido mau estar nos meios políticos.

 Na perspectiva do regresso para breve, começo a organizar as ideias e sempre que não é possível deslocar-me a Bissau, peço a alguém da companhia para se informar sobre o embarque do meu periquito.
 Passei nesta altura por um período bastante tenso, por um lado porque o desgaste físico e psicológico já era grande, por outro a ansiedade natural de um regresso que se perspectivava para breve.
 Talvez causado por este estado de espírito, estive na iminência de complicar o fim da minha comissão e o consequente regresso, com um problema de ordem disciplinar, num conflito em que fui interveniente com um alferes que tinha chegado recentemente à companhia para completar um estágio de três meses numa unidade operacional, findo o qual regressaria à metrópole onde era promovido a capitão e posteriormente mobilizado para comandar uma unidade.
 Numa noite em que no bar de sargentos o movimento era muito, motivado pela presença de grupos de comandos e pára-quedistas que preparavam a saída para mais uma acção, o alferes José Manuel, já por mais de uma vez, tinha solicitado a minha presença junto da arrecadação para que procedesse à troca de uma peça de roupa da cama.
 Depois de o ter feito insistentemente sem qualquer resposta da minha parte, resolveu deslocar-se ao bar de sargentos e em termos que eu na altura considerei não serem os mais correctos, ordenou-me que largasse o que estava a fazer e fosse de imediato satisfazer o seu pedido.
 Como não lhe obedeci e ainda respondi igualmente de uma forma menos correcta, lembrando-lhe que já era muito tarde, que estava a trabalhar e que ainda tinha muito pela frente, no dia seguinte bem cedo sou alertado pelo furriel vago-mestre com a notícia de que o referido oficial estava a elaborar uma participação disciplinar dirigida ao comandante da companhia e contra a minha pessoa.
 

 Ciente das consequências que daí poderiam resultar, fui de imediato alertar o 2º sargento Guerreiro para o sucedido, pois só ele naquele momento podia fazer com que as coisas não tomassem proporções mais graves, tentando que o alferes desisti-se das suas intenções.
 Não o conseguimos demover e a participação seguiu em frente tendo-me sido levantado um auto, resultante de um processo disciplinar.
 Quase no final da comissão de serviço estava a ser pela primeira vez alvo da justiça militar e se o facto de não ter antecedentes podia de algum modo funcionar a meu favor, por a infracção ter sido cometida sobre um oficial podia ser mais complicado de resolver.
 Esta falta disciplinar, ao abrigo do RDM (Regulamento Disciplina Militar), resultava no mínimo na pena de oito dias de detenção e ao consequente adiamento do regresso que se podia prolongar em mais alguns meses.
 Fui ouvido pelo oficial nomeado para os problemas disciplinares, um alferes miliciano operacional da companhia, pessoa de grande flexibilidade e de apurado sentido de justiça, natural de Chaves e com quem pontualmente fazia umas patuscadas.
 Reunimo-nos na sala destinada para esse efeito, ouvindo a minha versão dos acontecimentos e confrontando-a com o que constava na participação.
          Considero ter tido muita sorte porque este oficial com quem eu tinha um óptimo relacionamento pessoal, elaborou o auto de uma forma muito favorável, tentando minimizar as consequências da eventual pena.
 Durante as mais de três horas em que declarei a minha versão dos factos, foram feitas interrupções pontuais porque tínhamos 
companhia, cerveja, queijo e presunto que o alferes tinha recebido há poucos dias da sua terra.
 Sei que a redacção final do auto foi por este oficial de alguma forma aligeirada para que a interpretação final atribuída pelo comandante, não fosse no sentido de a agravar.
 Terminado o auto, restava-me aguardar pelo veredicto final por parte do comandante da companhia, antes porém solicitei mais uma vez a intervenção do sargento Guerreiro junto deste.
 Alguns dias mais tarde sou chamado ao gabinete do capitão, que depois de demonstrar a sua reprovação pela minha atitude para com um oficial, alertou-me para a pena a que me sujeitava, sugerindo-me que poderia amenizar o meu castigo se fizesse um pedido de desculpas públicas ao alferes em causa.
 A minha pronta resposta foi a de que independentemente do castigo que entendesse atribuir-me, nunca da minha parte ia haver um pedido de desculpas por achar que apesar de eu não ter sido totalmente correcto, antes tinha sido o alferes extremamente incorrecto para comigo pela forma verbal e gestoal como se dirigiu a mim.
 Houve ali um longo período de insistência para que eu alterasse a minha posição mas, face à minha resistência e graças à intervenção do sargento Guerreiro, actuando no sentido de exaltar as minhas qualidades como homem e militar, o comandante acabou por ceder nas suas intenções, concluindo ir ficar sem efeito o castigo, não sem me ter dado uma enorme reprimenda que naquela fase já não causava grande impacto.
 Depois disto e no decorrer de um jogo de voleibol disputado entre oficiais e praças, ia surgindo outro conflito com a mesma pessoa após disputa de uma bola junto à rede que foi mal interpretada, face aos antecedentes ocorridos muito recentemente. 

   Na conclusão deste episódio, apetece-me fazer uma pequena referência a um poema de Manuel Alegre:
 
(Mesmo na noite mais triste / Em tempos de servidão, / há sempre alguém que resiste, / Há sempre alguém que diz não.)
 Resta-me acrescentar que já depois de terminada a comissão, encontrei casualmente o referido oficial agora já com a patente de capitão do exército português, numa rua de Lisboa, onde depois de um grande abraço fomos beber uns copos recordando de uma forma salutar e divertida este episódio que ficou completamente sanado.
 Depois de muita pesquisa e persistência, consigo finalmente saber que estaria previsto para meados do mês de Fevereiro a partida para a Guiné do militar que me iria substituir.
 De cada vez que uma coluna vinda de Bissau chegava a Teixeira Pinto, procurava via rádio do serviço de transmissões, saber se na mesma vinha algum periquito e caso afirmativo, quem é que vinha render.
 Era necessário confirmar muito bem qualquer informação, porque por vezes surgiam algumas intencionalmente falsas, fornecidas apenas com a intenção de se começar antecipadamente a comemorar pagando umas rodadas de cerveja.
 Finalmente e já muito próximo do fim do mês de Fevereiro, surge a boa notícia de que na coluna vinha um 1º cabo para o Bachile e para render o cabo Branco.
 Fiquei algo impaciente até a nossa viatura chegar ao quartel e apesar de nesse dia estar-mos por razões de segurança 
 sem iluminação, mesmo assim com todas as luzes apagadas, foi-me fácil perceber que na Berliet vinha um novo elemento distinguindo-se bem pela tonalidade da pele e pela boa conservação da sua farda, faltando só confirmar se de facto era o destinado a substituir-me.

 Logo que saltou da viatura perguntei quem ele vinha render, respondeu-me que era o cabo Branco, no entanto só depois de verificar cuidadosamente a respectiva guia de marcha, confirmei que efectivamente assim era e pode extravasar toda a ansiedade acumulada, procedendo à digna recepção ao novo elemento e comemorando com todos os camaradas aquele momento tão desejado.

 Depois da habitual praxe com que brindávamos os periquitos, seguiu-se mais uma improvisada festa que durou toda a noite em amena confraternização com muita comida e bebida e com a presença de um significativo número de camaradas.

 No dia seguinte foi minha intenção começar desde logo a passar o serviço para que tão rápido quanto possível o novo elemento estivesse em condições de desempenhar as suas funções, para que em breve pudesse fazer as malas e rumar a Bissau aguardando transporte para Lisboa.

 Alguns dias decorridos, já o periquito estava em condições de assumir o seu papel e informei o meu chefe o 2º sargento Guerreiro que no meu entender estava tudo pronto para que se procedesse à elaboração da respectiva guia que dava por concluída a comissão e me autorizava a ir para Bissau a aguardar disponibilidade de transporte.























Sem comentários:

Enviar um comentário