sexta-feira, 11 de maio de 2012

GUINÉ BACHILE-1972-1974 XI






  Não foram raras as vezes que era necessário percorrer alguns metros para que fosse possível juntar bocados de pernas ou de braços dispersos pelo terreno, para que com o auxílio de algodão e ligaduras, criar as condições mínimas para lhes vestir a farda com que iam a sepultar.

Na CCAÇ 16, pontualmente surgiam novos militares, oficiais e sargentos que frequentavam estágios com o objectivo de uma futura promoção ou que vindos de zonas onde a guerrilha passava por uma fase de extrema actividade, vinham terminar os últimos meses da sua comissão nesta companhia.

Em meados deste ano, chega à nossa unidade um furriel de operações especiais vindo do BART6522/72 (batalhão de artilharia) que por ter estado numa zona altamente fustigada por ataques IN, foi ali colocado para recuperar, e cumprir o resto da sua comissão num local um pouco mais tranquilo.

 Curiosamente, quando do primeiro contacto com este novo elemento, achei que não me era completamente estranho, o mesmo sucedendo com ele.

 Após pensar um pouco, rapidamente concluo tratar-se do meu amigo Diogo, um antigo companheiro dos bancos da escola primária que frequentamos no bairro da Pontinha onde ambos residíamos.

 Manifesta alegria por ao fim de tantos anos nos voltarmos a encontrar e naquelas condições a tantos quilómetros das nossas casas.

 Conversámos longamente sobre várias questões, recordámos a nossa escola os nossos amigos e a nossa professora, falando igualmente sobre os nossos diferentes percursos ao longo dos anos em que nunca nos encontramos.





 O meu amigo Diogo, era um jovem extremamente alegre sempre com elevados níveis de moral, bastante extrovertido e permanentemente disponível a qualquer solicitação de um camarada.

 Tinha uma relação muito particular com a guerra e apesar de estar a poucos meses do fim da sua missão extremamente dura até ali, seria normal resguardar-se um pouco, no entanto, nunca se negava a qualquer tarefa por maior perigo que ela representasse.

 Saía para acções no mato quando a isso era obrigado e até voluntariamente quando entendia que era necessária a sua colaboração no apoio aos restantes camaradas.

 Brincava com a guerra chegando a filmar e a fotografar junto à porta da sua caserna, os diversos efeitos e cores provocados pelos disparos de munições tracejantes, que cruzavam e iluminavam o nosso quartel quando dos ataques nocturnos que nos infligiam.

 No entanto e apesar deste espírito a sua passagem pelo Bachile, acabou por não ser feliz, devido ao agravar da situação causado pelo aumento das acções desenroladas naquela região da Guiné.

 Também porque quando numa saída de rotina para o mato com o seu pelotão, seguindo por um trilho devidamente localizado num pequeno mapa da zona para o efeito, a dado momento alguém que ia colocado nos primeiros lugares do grupo constata que o Diogo tem a sua bota colocada em cima de uma das minas por ele instalada alguns dias antes.

 Decorridos alguns segundos de extrema tensão, surge o aviso pela voz embargada de um camarada:

 Diogo tem calma, tens o pé em cima de uma mina, levanta-o mas muito lentamente

 Se normalmente as incursões no mato são feitas em grande silêncio, naquele momento, ele foi de tal forma profundo em todo o grupo, que ficou sem a mínima reacção, completamente bloqueados e sem pinga de sangue.

 

 Desconheço o que teria passado naquele momento pela cabeça de cada camarada que incluía o pelotão.
 Após alguma hesitação momentânea, o Diogo assim procedeu e para grande alívio e espanto de todos a mina não deflagrou.
 Esta situação só foi possível porque estávamos na época das chuvas quando os terrenos estão normalmente bastante húmidos ou mesmo alagados e o percutor accionado pelo pé do Diogo não fez explodir o detonador e por consequência a sua carga base, cujo poder de fragmentação causaria com certeza danos incalculáveis.
 Meses mais tarde, já a poucos dias do final da sua comissão e após ter vivido outras situações igualmente criticas, acabou por falecer, tornando-se a única vítima de uma emboscada contra um Unimog, no momento em que regressava do Cacheu, local onde acompanhado de mais alguns camaradas tinha ido comprar marisco para organizar a sua festa de despedida.
 Foi desta forma e a poucos dias de regressar a casa que faleceu o Diogo, o seu nome passou também a fazer parte da enorme lista de mortos em combate, agora perpetuados com a inscrição num monumento localizado em Belém junto ao forte do Bom Sucesso, que homenageia todos os falecidos em combate nas três frentes da guerrilha.


          No meio desta guerra por vezes tão cruel, alguma coisa se saldava de positivo, a fraternidade que só um combatente entende e que outros jamais perceberão quando da morte de um companheiro jovem que como nós também sonhava e que o deixou de fazer de uma forma abrupta.
 Sentimentos que por mais esforço que alguém possa tentar fazer, só quem esteve envolvido nos diversos cenários os consegue traduzir.
 Já com mais de metade da comissão cumprida o registo na minha agenda apresenta um número de dias para o final inferior aos que já foram superados.
  A forma de estar ao fim de alguns meses neste ambiente altera por completo o nosso comportamento passando a ter atitudes um pouco mais irresponsáveis, desprezando até algum amor pela própria vida, chegando em períodos de maior acalmia, sentir a necessidade de confusão, desejando que surgissem problemas.
 Na ausência de festivais, o comando da companhia organizava simulacros ou alarmes como nós designávamos, de forma a testar a nossa resposta às situações reais.
 Esses simulacros eram totalmente preparados pelo comandante de companhia em rigoroso sigilo e eram accionados pelo disparo de rajadas de G3, efectuadas por este à porta do seu gabinete.
 Estas acções, permitiam testar as diversas reacções do grupo e igualmente treinar ou apurar técnicas de fogo que no meu caso tinham por finalidade afinar a pontaria do morteiro, ensaiando disparos a diferentes pontos de referência, às copas de árvores ou às pontas dos seus ramos.
 Entre os vários ataques e as grandes operações desencadeadas em conjunto com outras forças, também à companhia era devido proceder a algumas saídas de rotina no  


mato para tentar interceptar grupos IN em movimento, controlar as populações a eles afectas ou proceder à colocação de minas em locais estratégicos.
 Na sequência destas acções, frequentemente eram interceptadas junto das bolanhas ou em zonas populacionais controladas pelo IN, mulheres e crianças que depois de resgatadas, eram trazidas de sua livre vontade até ao quartel, onde lhes eram prestados todos os cuidados de saúde e outros face às necessidades.
 Após serem devidamente alimentadas e vestidas, quase sempre pediam para regressar à sua tabanca argumentando quererem ir buscar a mãe o irmão ou o Fiju (filho) que tinham deixado ficar na mata.
 Por mais que soubéssemos das possíveis consequências que daí podiam advir, o pedido tinha quase sempre uma resposta afirmativa.
  Organizava-se a saída de um grupo de homens formando um ou dois pelotões para as acompanhar até um determinado ponto definido pelas NT e próximo da tabanca por elas indicado.
 Depois de algumas horas de espera, na maior parte das vezes esta resultava infrutífera e a missão das NT sem o efeito desejado.
 No regresso ao quartel, as NT além da frustração causada pelo insucesso de mais uma operação de psicossocial, eram quase sempre surpreendidas com uma emboscada, em consequência da informação que entretanto os elementos civis tinham passado aos guerrilheiros.
Igualmente era frequente quando da captura de elementos militares ou civis afectos ao PAIGC, estes não colaborarem prestando qualquer informação útil de forma espontânea, ou mesmo após serem sujeitos a alguma pressão.
 

 Além dos ataques direccionados às instalações do quartel, eram também frequentes as emboscadas às nossas colunas auto que ocorriam com maior incidência nos percursos entre o Bachile e Teixeira Pinto, efectuados a viaturas isoladas e com um reduzido número de elementos.
 Estas acções eram executadas por bigrupos (força IN equivalente a 50/60 homens) em zonas na estrada de curvas bem acentuadas e a sua disposição no terreno em forma de WW, processo considerado bastante eficiente no objectivo de atingir simultaneamente uma coluna em vários pontos.
 Esta disposição no terreno, fazia colocar os elementos das espingardas metralhadoras mais perto da estrada e os portadores de morteiros e R P G, numa posição mais recuada e de apoio às linhas da frente.
 Um princípio de emboscada era por norma assinalado por alguns tiros de costureirinha (pistola metralhadora PPSH-IN), cujo disparo se perceptível pelos nossos elementos, era sinal indicativo para o condutor quase sempre um africano com alguma experiência e conhecedor do terreno retirar rapidamente a viatura da estrada, saindo da zona alvo, para que cada um se protegesse o melhor possível, abrigando-se num buraco ou atrás de um baga-baga, tentando quando possível, retaliar evitando a aproximação do IN.
 As consequências destas emboscadas, dependiam muito da nossa reacção ao efeito surpresa das mesmas e ao número de homens que o IN dispunha no terreno quase sempre superiores aos nossos e que na maioria das vezes só mesmo por falta de organização dos guerrilheiros e muita sorte do nosso lado, as consequências não foram outras.
 Numa das emboscadas em que estive directamente envolvido, e que considero ter sido a mais difícil de superar, tínhamos saído do Bachile por volta das 4,30 da manhã e transportava-mos além dos nossos militares, alguns civis 

  entre eles mulheres que como habitualmente transportavam consigo os mais diversos objectos para além de uma diversidade de animais entre galinhas, leitões e outros.
 A determinado momento, com metade do percurso decorrido fomos surpreendidos com uma acção do IN, a rápida intervenção do condutor bem experiente nestas situações, levou a viatura uma Berliet, para fora da estrada e do angulo de visão directa dos guerrilheiros.
 De pronto cada elemento saltou da viatura procurando um abrigo, lembro-me que não sei muito bem como, consegui proteger-me acompanhado da minha metralhadora G3 num buraco provavelmente provocado por uma granada de obus mas já parcialmente coberto de capim.
 Aí aguardei durante alguns minutos o desenrolar dos acontecimentos sem qualquer tipo de reacção que de todo não era conveniente naquele momento.
          Recordo-me que depois do primeiro impacto causado pelo fogo IN, só ouvia bem perto de mim os gritos inconvenientes das mulheres, que naquela situação não era o mais aconselhável.
         Estive perfeitamente consciente do perigo que corri naquele momento, sei que os turras andaram ali bem perto do local onde me refugiei, sabia que qualquer atitude menos pensada, me sujeitava a ser apanhado à mão, penso que nesse momento quase não respirei para não ser detectado, passando cerca de três horas escondido naquele buraco tentando controlar a situação, à espera de reforços que era suposto virem rapidamente da minha companhia ou de uma unidade de Teixeira Pinto.
 O sucedido já era do conhecimento de ambas as unidades porque naturalmente o destacamento da Ponte Alferes Nunes,  
situado a meio caminho entre elas, já teria com certeza comunicado, mas se por um lado não era muito lógico nem aconselhável desguarnecer a C CAÇ-16 por razões óbvias, por outro era muito complicado o comandante da CAOP tenente-coronel Rafael Durão, permitir a saída de alguém para o efeito.







 Deste modo só após decorridas mais de três horas bem escondido, comecei a ouvir vozes que me pareciam familiares a chamar pelos nossos nomes no entanto, só depois de me certificar de que quem gritava por mim era efectivamente uma voz que eu reconhecia, é que saí do buraco onde por vezes para não ser detectado me imobilizei por completo.
         Entretanto esta emboscada só não causou vítimas porque o grupo IN também não arriscou muito, provavelmente receando que o nosso apoio chegasse rapidamente, porque se têm arriscado mais, seguramente tinham provocado bastantes estragos.
 Era por esta mesma estrada que muitas vezes meia dúzia de brancos mal armados iam buscar correio, um bidon de ostras, pescar à granada ou cortar lenha para o forno e fogão, facilitando demasiado perante a situação, apesar de nunca terem surgido complicações de maior nestas saídas voluntárias, reconheço que de um modo geral, fomos bem protegidos pela sorte.
 Ainda no que à sorte diz respeito, não quero deixar de referir o que nos sucedeu que me recorde pelo menos por duas vezes.
 Os soldados africanos da companhia, porque não viam satisfeitas algumas das suas constantes reivindicações, abandonaram na totalidade o quartel ao princípio da noite em direcção a Teixeira Pinto, deixando à mercê de um assalto pelos guerrilheiros, vinte e oito homens que seriam facilmente anuláveis.
 A sequência dos mais diversos incidentes e os danos físicos causados, provocavam um permanente desgaste psicológico que 

causavam efeitos diferentes em cada elemento.
         Presenciei na mesma pessoa comportamentos tão diversos em situações semelhantes, num curto espaço de vinte e quatro horas.
 Pessoalmente também reagi de forma diferente às mais variadas situações que vivi e presenciei.
         Concluí que em determinados momentos da nossa vida somos capazes de ir buscar forças físicas e psicológicas onde pensamos já não ser possível existir, observei reacções e atitudes de muitos camaradas, que nem os próprios acreditavam serem capazes de as cometer o que vem evidenciar que o ser humano é dotado de faculdades que lhe permite reagir de forma que nem o próprio pensa ser possível.
         Os momentos mais difíceis e menos agradáveis, também nos deram em meu entender, algo de muito positivo pelas vivências e experiências que nos proporcionaram.
         Era nas grandes dificuldades e nos momentos mais complicados que se evidenciavam os extraordinários valores humanos que permanentemente eram colocados ao serviço dos outros.
 Depois surgiam outros momentos de maior descontracção e convívio que funcionavam como uma forma de superar e esquecer os mais negativos.
 A noite era aproveitada para umas patuscadas, uns jogos de matraquilhos, uma sessão de cartas, ou para ouvir os êxitos do momento através dos programas de discos pedidos pelos militares através dos úteis e simpáticos aerogramas e que passavam na única estação de rádio local situada em Nhacra.
 Frequentes eram também as conversas entre os camaradas com quem mais nos identificávamos, nelas eram abordados assuntos dos mais diversos ou temas de ordem geral e pessoal.
























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