terça-feira, 14 de junho de 2011

O OUTRO LADO DA GUERRA II

No passado mês de Março, comemorou-se o 50º aniversário do início da guerra do ultramar para uns ou colonial para outros.
Sempre atento a tudo o que se relacione com o tema mais uma vez, não quero deixar de escrever algumas linhas sobre o que penso sobre o assunto.
Numa cerimónia alusiva à efeméride, o chefe de Estado Aníbal Cavaco Silva, afirmou a determinado momento:
Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do ultramar.”
Como se percebeu pelas diversas reacções posteriores, tais palavras não foram entendidas consensualmente como era de esperar pelas diversas cores políticas.
Por isso gostava de recordar aos mais novos e aos menos atentos ao que foi a nossa intervenção nesta guerra, o seguinte:
Estima-se que nas três frentes, Angola, Guiné e Moçambique, tenham falecido 9000 homens, 30000 feridos evacuados, mais de 100000 doentes e feridos e ainda muito provavelmente mais de 140000 afectados psicologicamente pela guerra.
Foram custos demasiado elevados para um país com menos de 10 milhões de habitantes.
Existe uma grande diferença entre os jovens desse tempo e os que hoje representam o país em missões no estrangeiro aos quais se dirigiu o presidente da república.
Durante o período em que o governo de então sustentou a guerra, os jovens militares foram obrigados a baterem-se por causas de sobrevivência e honestidade individual, onde se incutia a ideia da defesa da Pátria.
Eram na sua grande maioria, jovens rurais simples e puros aldeões sem ideais de glória, ou jovens a quem lhes foram barrados projectos académicos e profissionais, enviados à força sem possibilidade de recusa e como única alternativa a deserção ou emigração a saltamos como forma de fugirem à guerra.
Recordemos igualmente, os enormes sacrifícios porque a maioria passou e a forma como alguns dos jovens caídos em combate, eram enterrados no mato à sombra de um qualquer embondeiro.
Fomos jovens que cumprimos a sua parte mais que o dever impunha e honraram-se.
Para o governo de então, da guerra apenas interessava a prestação, os sofrimentos e sacrifícios para de imediato abandonarem os sacrificados sem cuidado nem honra.
Foram para a guerra deixando mulheres, filhos e restante família e quando regressaram estes também não tinham percebido muito bem aquilo porque eles passaram.
Os feridos, tinham que se preparar para enfrentar os familiares que ficavam de rosto espantado porque não era aquele homem que tinha visto partir.
Só quem presenciou, pode testemunhar o que foi esse sofrimento e até simples marcas de estilhaços (pontos negros), que deformavam o corpo, tinham um efeito psicológico negativo tremendo.
Ao contrário do que sucede hoje, não havia qualquer tipo de apoio psicológico para os militares e suas famílias e dos parcos vencimentos que auferiam, uma boa parte era deixado cá para ajudar o sustento da família. Foi igualmente muito importante mas também não devidamente reconhecido o papel de mulheres enfermeiras pára-quedistas que embora não estivessem vocacionadas para combater, foram extremamente úteis no apoio e tratamento das sequelas morais e físicas.
Considerando as condições desse tempo, não podem restar dúvidas que os militares empenhados naquela guerra foram autênticos heróis e ao estado português resta-lhe enquanto é tempo, o dever morar de os homenagear, cumprir com o que foi aprovado na assembleia da república e não os esquecer e ignorar como tem feito até aqui.
Todos os países que tiveram militares nas suas ex colónias em África, souberam dignificar os seus jovens, Portugal já não tem muito tempo para o fazer, pois os primeiros combatentes ainda vivos têm mais de setenta anos.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O OUTRO LADO DA GUERRA I



Muitos têm escrito sobre a guerra do ultramar, muitos dão o seu testemunho de flagelos e outras vivências difíceis que deixaram muitas marcas físicas e psicológicas que se prolongaram até aos dias de hoje.
No entanto houve naturalmente um outro lado da guerra, aquele que permitiu a vivência e o contacto humano com um povo extremamente carenciado em todos os aspectos e muito diferente de nós nos seus hábitos e costumes, mas muito afável e com um eterno sentido de gratidão e amizade.
Malan Correia é um natural da Guiné-Bissau e fez parte do contingente da C CAÇ16, no período compreendido entre 1972 e 1974, coincidindo com a minha presença naquele aquartelamento.
Foi um elemento que desde logo se distinguiu dos restantes militares africanos pela sua personalidade, evidenciada variadíssimas vezes nas mais diversas situações.
Era um perfeito apaziguador das divergências entre elementos da companhia que ouvindo os seus conselhos o respeitavam.
Como operacional foi sempre preponderante no grupo, pois as suas decisões ou sugestões revelaram-se sempre de extraordinária importância e poderei mesmo afirmar que muitos de nós devido às suas atitudes lhe devemos a vida.
Esta sua forma de agir, valeu-lhe uma promoção atribuída pessoalmente pelo então General António Spínola em 24de Junho de 1973, precisamente no dia do meu vigésimo terceiro aniversário e no mesmo dia em que sofremos um forte ataque ao quartel.
                         
Decorridos trinta e sete anos sobre o meu regresso, tive recentemente o privilégio de o voltar a encontrar, na sequência de um problema de saúde que não podia ser resolvido na sua terra e que o obrigou a pedir ajuda ao nosso ex comandante de companhia Major General Abílio Dias Afonso que com a sua influência e a colaboração de outros elementos e entidades que lhe conseguiram proporcionar a adequada intervenção clínica.
Reencontramo-nos no passado mês de Abril, a convite do General Abílio Dias Afonso e do ex camarada Miranda, num almoço que decorreu nos arredores de Lisboa e que serviu para recordar momentos e emoções vividas passados que estão todos estes anos.
Descreveu-nos igualmente a situação difícil porque passou juntamente com a respectiva família após a independência, uma situação comum a todos os guineenses que serviram o exército português.
O mundo é pequeno e ainda mais recentemente durante o meu internamento num hospital em Lisboa, encontrei outro filho da Guiné e do chão Manjaco, precisamente da região de Teixeira Pinto (Canchungo) e que na altura devia ter dez anos, muito provavelmente um dos putos com quem partilhei alguns momentos de descontracção.
Conversámos durante muitas horas e ambos recordámos os lugares e algumas situações decorrentes daquela época.
Hoje e devido à situação do seu país, vive em Cabo Verde na Ilha de S. Vicente onde exerce a profissão de electricista.
Não vou perder o contacto com estes amigos e continuarei a tentar encontrar outros que eventualmente andam por aí dispersos e desta forma quero dar continuidade ao apreço que tenho pelo povo da Guiné, que pelos relatos que me vão chegando, continuam a ter uma enorme gratidão para com os portugueses.